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Melancólico em livro de Bandeira, Carnaval em 1919 foi pura libertinagem

 

Segundo o dicionário Houaiss, efeméride designa, primordialmente, “a tábua astronômica que registra, em intervalos de tempo regulares, a posição relativa de um astro”. Na segunda acepção, “fato importante ou grato ocorrido em determinada data”.

E, na terceira acepção, “comemoração de um fato importante, de uma data etc.” Muita coisa cabe nesse “etc”, principalmente a jubilosa celebração de alguma cidade, município ou estado. Mais frequentes, porém, são as efemérides temáticas: já foram publicadas em livros, entre outras, as aeronáuticas, as astronômicas, as judiciárias, as navais. 

No campo literário, ressalte-se livro de 1997 dedicado a efemérides da Academia Brasileira de Letras e dois outros similares, das academias mineira e pernambucana.

Nas sessões acadêmicas rememoram-se vida e obra de um escritor a partir de um ano chave de sua biografia, em especial se representa data redonda: cinquentenário de morte, centenário de nascimento. Sendo usual o recurso a tais datas para evocar os antecessores, seria igualmente possível a comemoração de uma outra espécie de aniversário, não do criador, mas da criatura: a obra. 

Embora o escritor seja o pai do livro, o livro, de algum modo, é o pai do escritor, pois este, o autor, só nasce, enquanto tal, em decorrência daquele, o livro. O cidadão Manuel Bandeira, por exemplo, chegou ao mundo em 1886, mas o poeta Manuel Bandeira viria à luz apenas em 1917, graças ao volume “A Cinza das Horas”, que conferiu a ele a certidão de nascimento como escritor. Autor que, literalmente, brotou da cinza.

O poeta renasceria em livro dois anos depois, com a publicação de “Carnaval”. Este 2019, portanto, corresponde ao ano do centenário da obra. Ocasião propícia para redimensioná-la no conjunto da produção poética do escritor. 

Constatamos que seu teor antecipatório do modernismo não se dá na amplitude que lhe conferiu Mário de Andrade, a ponto de haver cognominado Manuel Bandeira de “o são João Batista” do movimento. 

Com a lucidez que o caracterizava, o poeta pernambucano declarou que devia muito mais ao modernismo do que o modernismo a ele, e que só 11 anos mais tarde, com “Libertinagem”, de 1930, aderiria inteiramente à estética de 1922.

Talvez tenha contribuído para o hiperdimensionamento do papel de Bandeira como vanguardista “avant la lettre” o fato de um poema de “Carnaval” ter sido lido em São Paulo na Semana de Arte Moderna: o famoso “Os Sapos”, sátira ao parnasianismo.

Observemos o poema no conjunto do livro. Trata-se do segundo texto de “Carnaval”, composto de 13 quadras e um terceto. Os 55 versos são rigorosamente pentassilábicos, e todas as quadras são rimadas no esquema a-b-a-b. Nada que prenuncie o verso livre —presente, aliás, numa única peça da coletânea, “Debussy”, em flagrante contraste com os demais 31 poemas, regularmente rimados, escandidos e metrificados.

Na estrofação, predomínio quase absoluto da quadra, ao lado de poucas quintilhas e pouquíssimos tercetos. Mesmo “Os Sapos” empreende menos uma crítica ao parnasianismo como um todo do que a certos tiques e lantejoulas do estilo. Seria, aliás, contraditório Manuel Bandeira atacar indistintamente o movimento, pois seu livro contém vários poemas de nítida e bem executada fatura parnasiana, seja pela forma (versos isométricos, sonetos etc), seja pelo vocabulário de elevada extração.

Resta examinar a configuração do Carnaval propriamente dito na obra homônima de Bandeira. Ainda sob esse aspecto, ela muito pouco prefigura o despojamento vocabular e a extraordinária incorporação das cenas populares do futuro poeta. Nela desfila, para citar o último verso da coletânea, “o meu carnaval sem nenhuma alegria”. 

Com efeito, em vez do rumor das ruas, haverá, na maioria dos poemas, a encenação do medieval triângulo pierrô-colombina-arlequim, num confronto cujo desfecho é pré-conhecido. Leia-se o fúnebre autorretrato de pierrô: “Atrás de minha fronte esquálida,/ Que em insônias se mortifica,/ Brilha uma como chama pálida/ De pálida, pálida mica...”. Apesar do Carnaval, não há dança de salão, e, sim, dança da solidão. 

Se o derradeiro verso de “Carnaval” confirma a tonalidade depressiva e melancólica do volume, se o penúltimo poema descreve uma túnica de pierrô “feita de sonho e de desgraça”, o verso inicial do volume, no entanto, prometia um roteiro de puro prazer e desregramento: “Quero beber! Cantar asneiras”. 

Como a sequência do livro demonstra, nunca se deve acreditar rápido demais nos poetas. E, a propósito desse verso, Bandeira, numa entrevista de 1964, registra, com deliciosa autoironia: “Em ‘Carnaval’ eu dizia: ‘Quero beber! Cantar asneiras!’. Pois um crítico observou: ‘Conseguiu plenamente o que queria’”.

O centenário de “Carnaval” nos dá oportunidade de falar também dos festejos carnavalescos propriamente ditos no ano de 1919. Inexiste no livro a presença da festa popular, salvo no poema “Sonho de uma Terça-feira Gorda”. Mas a folia carioca de então guardou uma peculiaridade que a tornou, de certo modo, inesquecível: aquele carnaval ficou conhecido como “o da gripe espanhola”, quando os habitantes do Rio, pela via dionisíaca, exorcizaram a sombra da morte que descera sobre a cidade pouco tempo antes.

No artigo “O Carnaval da Gripe Espanhola”, o historiador Ricardo Augusto dos Santos informa que a gripe aqui desembarcou em setembro de 1918, tendo efeito catastrófico. Num Rio de Janeiro de cerca de 1 milhão de habitantes, estima-se que 600 mil contraíram o vírus e 15 mil morreram. Comércio, indústria e serviços públicos foram afetados, nos casos em que não tiveram paralisadas por completo suas atividades. 

Abandonaram-se os cadáveres, na falta de coveiros para enterrá-los. Mas, conforme poderia ter escrito Machado de Assis, a gripe entrou à socapa e saiu à sorrelfa, pois desapareceu em novembro, depois de dois meses devastadores.

Para comemorar simbolicamente a vitória contra a doença, a gripe espanhola foi logo cantada nas ruas, tornando-se tema de marchinhas carnavalescas, como: “Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria./ Quem não morreu da espanhola,/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/  Toca a rir, toca a brincar...”.

Houve, porém, algo mais apimentado no Carnaval de 1919, a ponto de, décadas depois, três grandes cronistas a ele retornarem.

Ruy Castro: “Quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam em pular —invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas. E, numa dessas, o menino Nelson [Rodrigues] viu, dançando no alto de um carro, na praça Saenz Peña, uma moça fantasiada de odalisca, com o umbigo à mostra. Ninguém de sua família tinha umbigo —ele próprio só agora descobria o seu”.

Carlos Heitor Cony: “No Rio, o sujeito ia atravessar a rua, botava o pé no meio-fio com plena saúde e chegava morto ao meio-fio do outro lado. Era fulminante a gripe, os parentes deixavam os mortos nos bondes, pagavam a passagem deles, como se passageiros fossem. Não havia tempo nem lugar para o enterro. Natural que, depois da fase mortuária, viesse a fase libertária, ou libertina, basta dizer que as delegacias da cidade registraram a queixa de 4.315 defloramentos e outros tantos casos de abandono do lar, adultério e até incesto. E assim é que o Carnaval de 1919 permanece inédito, à espera que algum desocupado encare a época, o Rio da gripe e de depois da gripe, o Rio cuja violência explodiu no sexo de um Carnaval como nunca houve nem haveria igual. A ideia [...]  era pegar como narrador um personagem nascido nove meses depois, um filho dessa esbórnia, desse pânico pela morte que estourou donzelas e famílias. Os brasileiros nascidos na feliz data de novembro de 1919 que se habilitem”.

Nelson Rodrigues: “Estou aqui reunindo as minhas lembranças. Aquele Carnaval foi, também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata é mais cruel e mais ressentido do que um Nero ultrajado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou sujeitos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no Carnaval... E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte, virou o Rio de Benjamim Costallat [...] Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola e tão humilhados e tão ofendidos que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias... Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: ‘Na minha casa não se racha lenha,/ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa não há falta d’água,/ Na minha abunda, na minha abunda’”.

Regressemos agora ao dicionário Houaiss, que deixamos aberto na página do vocábulo efeméride. Ele se localiza imediatamente após um outro que é o seu oposto, como se o veneno da fugacidade estivesse à espreita para inocular-se em tudo que se deseja eterno. Sim, porque a palavra que dicionariamente antecede efeméride é efemeridade. O efêmero é o reino daquilo que só dura um dia, numa negação do resgate que a efeméride intenta efetuar. 

Diversamente dos dois carnavais aqui referidos, o literário e o literal, que perduram na memória de nossa cultura, quantos milhares de livros e milhares de festas de 1919 extinguiram-se na modesta condição de terem sido somente efêmeros? 

Talvez valesse a pena considerar que, na sábia lição oferecida pelo dicionário, é de apenas um passo, ou um verbete, a distância entre a pretensão da eternidade e a realidade do esquecimento. 

Folha de S. Paulo, 22/06/2019