O próximo 11 de dezembro assinala o centenário de nascimento de uma das figuras mais importantes da música brasileira, Noel de Medeiros Rosa, o autor de composições inesquecíveis como Com que roupa?, Palpite infeliz, Último desejo, Fita amarela, O orvalho vem caindo, Até amanhã, Quando o samba acabou, Conversa de botequim, Feitio de oração, Feitiço da Vila, Três apitos, Pra que mentir?, Meu barracão e tantas outras. Foi uma curta existência, a sua, marcada tanto pela boemia como pelo sofrimento. Morreu em 1937, com apenas 26 anos de idade, deixando contudo uma obra que até hoje nos assombra e nos comove.
Uma coisa que nem sempre se menciona é a ligação de Noel com a medicina. Coisa que começa já em seu nascimento; o parto, difícil, foi realizado a fórceps pelo obstetra. Durante o procedimento, o maxilar inferior do bebê foi lesado e permaneceria atrofiado pelo resto da vida, o que lhe valeu o apelido de “Queixinho”. Situação penosa. Noel alimentava-se com dificuldade, evitava comer ou rir em público, sua voz era fraca e, por causa da dificuldade de higiene oral, sofria de cáries e outros problemas. Àquela época, cirurgias corretivas ainda não eram praticadas, coisa que deve ter sido uma frustração para o jovem. E talvez essa frustração explique sua decisão de cursar medicina: em 1931, egresso do renomado Colégio São Bento, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, beneficiado por um decreto que facilitava a entrada de novos estudantes no curso. Neste não permaneceu muito tempo, contudo; o aprendizado da profissão era incompatível com a vida de alguém que, como Noel, gastava tudo que ganhava, bebia, era mulherengo, dormia em bancos de praça. “Convenci-me de que a medicina era uma carreira absorvente, exigindo estudos incessantes, profundos, constantes, estudos que exigiriam todas as atenções”, disse, em entrevista. De qualquer modo ficou em sua obra uma pequena recordação deste apego pela medicina; é a composição Coração (Samba anatômico), cuja letra diz: “Coração, grande órgão propulsor/ transformador do sangue venoso em arterial./Coração, não és sentimental,/Mas entretanto dizem que és o cofre da paixão …”
Como sambista, Noel pode ter sido perfeito, mas pelo menos essa letra levanta dúvidas sobre o seu conhecimento anatômico. Grande órgão propulsor, o músculo cardíaco é, mas “transformador do sangue venoso em arterial”, essa não. A transformação ocorre nos pulmões, mediante a oxigenação; o sangue retorna então ao coração e é bombeado para o corpo. Mas que, para um poeta, o coração é “o cofre da paixão”, isso é pacífico.
Curiosamente, Noel Rosa não foi o único compositor brasileiro ligado à medicina. O paulista Paulo Emílio Vanzolini, nascido em 1924, e autor de sucessos como Ronda, Volta por cima e Na boca da noite, também cursou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (mas concluiu-a). Como Noel, frequentou rodas boêmias e nelas iniciou sua carreira musical. Formou-se em medicina em 1947, mas, atraído pela zoologia, foi para os EUA, onde fez doutorado nesta área, na Universidade de Harvard. Durante muito tempo suas composições permanecerem praticamente inéditas, mas depois começaram a ser interpretadas por artistas famosos: o cantor Noite Ilustrada, Chico Buarque e Toquinho, este também parceiro. Ao mesmo tempo, dava prosseguimento à sua carreira científica; tornou-se diretor do Museu de Zoologia; foi um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ativo pesquisador e autor de numerosos trabalhos científicos.
Poderia Noel ter seguido seu exemplo? Será que, como dizia o cartaz de homenagem a Noel Rosa da Faculdade de Medicina da UFRJ, “medicina dá samba”? Pergunta ociosa, claro. O importante é que o talento aparece em qualquer lugar e a qualquer tempo.