O protesto contra a decisão da direção da Biblioteca Nacional de dar a medalha da Ordem do Mérito do Livro ao deputado federal Daniel Silveira e a vários outros bolsonaristas que nada têm a ver com cultura e livros, transformando sua mais importante condecoração em um instrumento político, provocou um movimento de intelectuais, impulsionado por membros da Academia Brasileira de Letras, contra a inexistência de uma política cultural digna do nome durante o governo de Jair Bolsonaro, que também foi condecorado apesar de sua ojeriza aos livros.
Circula pelas redes sociais um áudio do presidente a fazer apologia dos clubes de tiros que dobraram a partir de uma legislação de seu governo e em que, criticando o ex-presidente Lula de maneira grosseira, faz uma ressalva que julga importante: “O nove dedos diz que vai transformar os clubes de tiros em bibliotecas”. Evidenciada essa aversão aos livros, e a apologia das armas, vários intelectuais se recusaram a receber a condecoração.
O ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), escritor Marco Luchesi, esclareceu no Twitter: “Se aceitasse a medalha seria referendar Bolsonaro, que disse preferir um clube ou estande de tiros a uma biblioteca”. Outro acadêmico da ABL, o poeta Antonio Carlos Secchin, explicou o motivo de sua recusa: “ Se constituirá na celebração de uma única diretriz política, agraciando pessoas sem relação com livros, biblioteca e cultura”.
Ele salientou que a estratégia do governo foi misturar grandes nomes da cultura com bolsonaristas, para que parecesse que a política cultural do governo estava sendo avalizada: “Esse governo não merece que, via medalha, nossos nomes se associem a ele”. O historiador Arno Wehling, diretor das Bibliotecas da ABL e ex-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) disse que foi surpreendido com a inclusão na lista dos agraciados com a medalha da Biblioteca Nacional de “pessoas não apenas distantes de sua história, mas até mesmo antagônicas à sua essência”.
Disse que o “enorme respeito” que tem pela Biblioteca Nacional fez com que abdicasse da honraria: “Instituições relevantes precisam ser preservadas a fim de que possam atender aos valores maiores da sociedade brasileira”. A grande maioria não conhecia a relação dos agraciados, como aconteceu com a escritora Nélida Piñon, que compareceu à solenidade para receber a medalha.
Diante do fato consumado, Nélida, ao saber do sentido político que tentaram dar à premiação, recusou apoio ao governo Bolsonaro, como aliás sempre fez, e atribuiu sua aceitação ao amor e respeito que tem pela Biblioteca Nacional, “que não é do governo, mas do povo brasileiro”. Segundo Nélida, “o governo Bolsonaro caracteriza-se pelo desleixo com a cultura nacional, que não foi tema de seu governo”. Ela diz que não se arrepende de ter ido, “de ter reverenciado a Biblioteca Nacional, que é o panteão da cultura nacional”, mas transformou sua presença em uma ação de resistência: “É preciso reagir, eu reagi aos absurdos do governo Bolsonaro reverenciando a beleza da Biblioteca Nacional, os livros que lá estão”.
O historiador José Murilo de Carvalho comunicou aos colegas da ABL que também recusou a medalha, juntamente com outros três pesquisadores. No grupo de WhatsApp da ABL, houve várias manifestações de solidariedade. A atriz Fernanda Montenegro enviou “um imenso abraço e um imenso obrigado” aos colegas que tomaram a atitude. A escritora Ana Maria Machado se disse “orgulhosa da atitude de vocês frente a essa provocação”.
O economista Edmar Bacha classificou a atitude “digna, que honra a casa”, o jornalista e escritor Zuenir Ventura elogiou “a dignidade do gesto”. O cineasta Cacá Diegues mandou sua solidariedade com “grande e orgulhoso abraço”. O educador Arnaldo Niskier disse que o gesto “honra a Academia”. O romancista Antonio Torres sentiu-se representado pelos “confrades que se recusaram a coonestar essa cafajestada federal”. A escritora Rosiska Darcy de Oliveira classificou de “ofensivo premiar pessoas desqualificadas”.
A reação espalhou-se na área cultural. A ex-diretora executiva da Biblioteca Nacional, Maria Eduarda Marques, que se demitiu em março do cargo que ocupou por seis anos, mulher do sócio correspondente da ABL Leslie Bethel, também recusou a condecoração, assim como a escritora Mary Del Priori. O antropólogo Antonio Riserio foi outro que recusou. A rejeição ao uso político da medalha foi apoiada até mesmo pela família de um dos maiores poetas brasileiros, já falecido, Carlos Drummond de Andrade que, segundo eles, “devolveria a medalha” que lhe fora agraciada em outras épocas, em que os grandes intelectuais brasileiros a recebiam.