A vida cada vez vale menos, como se vê a todo instante. No Brasil, não vale nada, ou quase nada. Vale em nossas leis, se bem que cada vez mais desdentadas e avacalhadas pelas chicanas processuais que propiciam, notadamente para os ricos. Na prática, o que vemos é gente agonizando abandonada nos hospitais públicos e mortes violentas por todos os lados. O jovem delinquente compra sua primeira pistola e, para experimentá-la, mata alguém na primeira oportunidade. Um homem, como aconteceu não faz muito em Brasília, mata a namorada e, no dia seguinte, comparece a uma delegacia, revela o crime, entrega o corpo da vítima e a arma, e é também solto na hora.
Matar, no Brasil, é muito mais banal do que qualquer um de nós gosta de admitir. É muito fácil também. Como têm podido observar os que leem jornais e assistem a noticiários, há cidades (basta procurar no Google com jeito) onde é fácil contratar um pistoleiro e mandar matar um desafeto, contando ainda com a conveniente circunstância de que a grande maioria dos homicídios não é esclarecida. Para os casos mais triviais, dizem que sai muito em conta, valendo de sobra uma herança em disputa ou até um mero desagravo. E tem o carro, o método mais fácil e seguro. Qualquer um pode tomar umas talagadas, pegar o carro e matar quem desejar. A relação custo-benefício é incalculavelmente a favor do assassino e a embriaguez, em certas subculturas nacionais, é até atenuante. Em suma, entre nós há pouca diferença entre matar um rato e uma pessoa. Para não falar em matar um bicho do mato, mesmo em caso de necessidade, porque o Ibama prende e o crime é inafiançável.
Mas, mesmo onde matar não é tão fácil e não há tamanha impunidade, eliminar gente continua uma atividade prioritária em boa parte do mundo e há quem faça disso o grande objetivo de sua existência. Um carro-bomba ou avião explodido ali, um massacre acolá, um genocídio alhures. Ninguém mais, com exceção dos atingidos, dá muita importância a notícias sobre esse tipo de ocorrência, é tudo estatística. Dezenas de mortos, centenas de feridos, centenas de mortos, milhares de feridos, acaba tudo misturado e esquecido.
Na verdade, matar o semelhante é tão importante para os humanos que sempre houve um próspero mercado para os fornecedores dos meios para a eliminação do outro. É interessante que, quando pensamos em marcianos de ficção científica antiga, achamos que esses marcianos, habitantes de um planeta apenas um pouco menor que o nosso, seriam um todo homogêneo e não, como nós, divididos ferozmente entre territórios e categorias as mais disparatadas e arbitrárias e indo às fuças uns dos outros o tempo todo. Quer dizer, achamos que o certo seria vivermos harmoniosamente, como seres do mesmo planeta, que morrem imediatamente, se não mantiverem contato direto com o que os circunda, a começar pelo ar e o alimento. Mas, apesar disso, matamos os semelhantes a torto e a direito e frequentemente consideramos nobres os motivos, mesmo que saibamos que essa nobreza está no olho de quem mata.
Mas, não sei por que, o que mais me intriga são os fabricantes da morte, agora mais vivamente, com as notícias de armas químicas e biológicas na Síria. Muitos venenos foram descobertos por acaso, assim como cepas virulentas de micro-organismos, mas há cientistas dedicados a criar os mais devastadores agentes de morticínio e sofrimento em massa. Dizem-nos que os mocinhos não estocam essas armas, só os bandidos - ao que manda a sensatez responder com um "morda aqui". Ninguém sabe que pestes e pragas diabólicas estão encapsuladas nos arsenais, ou quando algum desatinado fará uso delas.
Uma dessas doenças, já se divulgou faz tempo, é o antraz, também conhecido como carbúnculo, tão brabo que, no Nordeste, virou palavrão, através da corruptela "cabrunco". Normalmente só contraído por contato direto com material infectado, em sua forma "evoluída" deve pegar até pelo pensamento. A intenção é matar, mas já li que não se despreza o importante "efeito moral", obtido pela reação dos contaminados, ao perceberem, a si mesmos e aos circundantes, cobertos de pústulas e chagas repulsivas.
Está bem, não se deve julgar o próximo, mas o que é que faz o sujeito trabalhar numa coisa dessas e chegar intencionalmente a esses resultados? Dizer que a ciência, como a justiça, é cega e, portanto, se desenvolver uma forma altamente letal de uma doença está nos limites da ciência, ela deve ser desenvolvida é a mesma coisa que saber que está nos limites da ciência projetar uma única bomba que destruirá a Terra e fazer essa bomba. Não era necessário o antraz de laboratório. Equipes de cientistas trabalharam sabe-se lá quanto tempo para desenvolvê-lo, sabendo perfeitamente para que serviria e como poderia ser empregado. Será que nem um só desses caras se detém para pensar na monstruosidade que está ajudando a gerar? Como será que eles fazem os cálculos para estimar o número de infectados por hora, o número de óbitos por dia e assim por diante, sem imaginar o sofrimento causado?
Estive assistindo a um vídeo interessante, na internet. Um químico fazia uma palestra sobre uma bela rãzinha alaranjada, nativa da América Central, do tamanho da unha do polegar. A rãzinha é predada por pássaros e precisa de uma defesa eficaz. Aí produz na pele um dos venenos mais potentes já descobertos, que atua em doses infinitesimais. Não dá nem para abrir o bico direito. Com o sistema nervoso bloqueado em milissegundos, o pássaro cai duro para trás e a rãzinha salta fora. Ainda não sintetizaram o veneno, mas é inevitável pensar que alguém pode estar se dedicando a isso, para legar ao futuro a possibilidade de, com uma ampolazinha jogada do alto, extinguir toda a vida animal numa área qualquer. Pode, não; deve estar, nossa espécie não falha.
O Globo, 26/8/2012