O nosso arraial político está surpreendido (ou irritado) com o acordo municipal celebrado entre dois pesos-pesados de larga quilometragem no cenário nacional: Lula e Paulo Maluf.
Aqui entre nós, por nada entender nem querer entender nada de nada, sobretudo de política, não a nossa, mas a universal, a política histórica, confesso que não fiquei nem irritado nem muito menos surpreendido.
Mas o destaque dado a Maluf me fez lembrar de uma de suas frases que causaram indignação na mídia, no seio das famílias e em todos os escaninhos da mídia: "Estupra, mas não mata!". Foi dita por ocasião de sucessivos casos policiais que aconteceram por aí, causando justificado horror na sociedade.
Sem me atrever a condenar ou elogiar o conselho de Maluf, acho que chegou a hora de mudar a frase: "Mata, mas não esquarteja!".
Estamos atualmente com um caso tenebroso, que não é inédito, mas raro: uma mulher traída pelo marido, seguindo talvez sem saber a tecnologia de Jack, o Estripador, matou o consorte com um tiro na cabeça, esperou mais de dez horas até que o corpo esfriasse e começasse a entrar na rigidez dos mortos.
Cortou-o em pedaços que couberam em três sacolas de lixo, que por sua vez couberam em três malas relativamente pequenas. Que por sua vez couberam no bagageiro de um carro e foram esvaziadas de sua carga macabra, espalhada em locais diferentes.
Já vimos coisas parecidas no cinema e na literatura policial. Os códigos penais e civilizados de nações igualmente civilizadas abrem um tipo de exceção ou de compreensão para os crimes passionais praticados por conta de uma súbita e violenta emoção que acompanha principalmente os casos de traição conjugal, de relacionamentos amorosos que acabam sem comum acordo ou de insultos que a honra de um ser humano não pode aceitar.
Não pretendo comentar o crime em si, seu cenário, suas circunstâncias que ainda estão sendo apuradas. Comento apenas o seu desfecho, o esquartejamento que começou -segundo laudos periciais que estão surgindo- com a vítima ainda viva.
Barbaridade à parte, que pode ser entendida, mas não justificada (o tiro na cabeça do marido sem a possibilidade de defesa), a repugnância que todos sentimos foi o esquartejamento, na certa demorado, de cabeça, tronco e membros de um corpo humano que talvez ainda estivesse com alguns resíduos de vida. A assassina, que prontamente confessou o crime, tivera alguma prática de enfermagem, em cujo curso não deve ser ensinado o processo de desmanchar um corpo humano. Há donas de casa que na ceia de Natal pedem sempre a colaboração de algum convidado para destrinchar o peru tradicional.
Além da enfermagem, a criminosa tem em seu currículo o grau de bacharel em direito. E um passado que, segundo as informações da polícia e da mídia, parece bastante turvo para os padrões da burguesia e dos bons costumes.
Nesse caldeirão ainda pouco detalhado, o mais chocante é a constatação do quanto pode a natureza humana. E aí não importa saber se a criminosa agiu sozinha ou se teve a colaboração de terceiros.
Falo em natureza humana sem diferenciar machos e fêmeas, ou companheiros e companheiras -como sempre faz o ex-presidente Lula. No caso, foi uma mulher que expressou de forma hedionda a natureza humana. Fosse um homem, teria como causa o mesmo resíduo do barro do qual todos viemos.
Sem espanto e sem irritação, poderia lembrar inúmeros casos, na história e na ficção, em que a nossa condição se exprime de forma aviltante. Citarei o comentário de Iago, que envenenou Otelo com a suspeita da traição de Desdêmona.
Em crise de "violenta emoção", o mouro de Veneza matou a mulher por causa de um lenço, mas não a esquartejou -nem Shakespeare chegou a tanto.
Para explicar a confusão provocada pela sua própria intriga e ampliada pelo ciúme injustificado e pela justificada cólera de Otelo, além de recomendar a todos um pouco de calma, Iago resume genericamente a situação, dizendo "men are men". (E as mulheres, pedindo perdão às feministas de todos os tamanhos e feitios, são mulheres.)
Folha de São Paulo, 22/6/2012