A morte calou uma das maiores vozes poéticas deste País quando levou Marly de Oliveira no começo deste junho. Lembro-me como se fosse hoje quando Zora e eu recebemos em casa a jovem Marly, há mais de meio século, e tivemos em mãos seus primeiros versos, ainda não publicados e escritos a mão num caderno de estudante.
Estava Marly então com 18 anos. Assim que li os primeiros quatro versos do caderno - "Que as horas tombam de nós/ como pássaros calmados,/ e breve esclarecem rosas/ caminhos desencontrados" - olhei para ela e perguntei: "De onde vem você, menina?" Resposta: "Do Espírito Santo via Campos". Lemos, Zora e eu, o caderno todo e sentimos, nele, a presença indubitável da poesia.
Mantinha eu, na época, uma seção literária, "Porta de livraria", diária, num jornal do Rio, onde ela havia lido meus artigos sobre a poesia brasileira do momento. Poucos dias antes, o livreiro e editor Carlos Ribeiro me havia telefonado para informar que estava publicando uma série de volumes de poetas jovens. Telefonei para ele, falei de Marly, que foi procurá-lo com seu caderno escolar, chamado "Cerco da primavera". O livro saiu no ano seguinte, 1957, há meio século, e teve êxito imediato nos meios literários do País.
Seus livros seguintes - "Explicação de Narciso" (1961) e "A suave pantera" (1962) - aumentaram-lhe o prestígio, tendo tido opiniões elogiosas de Cecília Meireles e Manuel Bandeira, entre outros, com isto fixando seu nome na poesia brasileira do século XX. Diga-se que poesia é símbolo, mas não só. Poesia é palavra, mas não só. Poesia é grito, mas não só. Poesia é cântico, mas não só. E que outros "mas não sós" se busquem para explicar o talvez inexplicável mistério da palavra transformada em poema.
A poesia talvez seja, antes de tudo, uma luta contra Tânatos, um estar sempre sobre a linha limítrofe do fim - do fim de qualquer coisa, de um amor, de uma paisagem, de um sonho, enfim do próprio fim. Ao mesmo tempo em que insufla vida, a poesia entende a morte. Assim pode ser vista a poesia de Marly de Oliveira, que nos deixou versos como estes: "Bom é ser árvore, vento./ Sua grandeza inconsciente./ E não pensar, não temer./ Ser apenas. Altamente./ Permanecer uno e sempre/ só e alheio à própria sorte./ Com o mesmo rosto tranqüilo/ diante da vida ou da morte."
Numa poesia como a de Marly de Oliveira, canta-se o próprio cântico. Para isto, o importante é transformar palavras e idéias em cânticos, buscar a compreensão de todos os mistérios e silêncios na palavra transformada em ritmos noturnos, "pois somos canto noturno", como diz Marly de Oliveira no final de um deles. A "solidão" é outro de seus temas, como neste verso com que termina um poema: "E estou tão só que a solidão cintila".
Para chegar à poesia a que chegou, criou Marly de Oliveira uma tranqüilo espírito de luta, através do qual procurava situar-se a si mesma diante da estranha e quase inexplicável necessidade que leva uma pessoa a fazer tudo, a vida inteira, para transformar o que sente, o que percebe, o que aprende, o que sonha, o que faz, acima de tudo o que ama, repito para transformar tudo isto num recado escrito para os que vivem no tempo, que os mata.
Marly de Oliveira, que entendeu como ninguém o indelével mistério da palavra poética, passa, agora que nos deixou, a ter um lugar certo na história da literatura brasileira. Espera-se que sua obra seja reeditada, inclusive a tradução que Marly fez do livro que José Guilherme Merquior escreveu em francês, "Verso universo em Drummond", lançado no Brasil pela Editora José Olympio, com orelhas de Josué Montello e Afonso Arinos de Mello Franco. "Explicação de Narciso" foi também editado pela Livraria São José e "A suave pantera" saiu na coleção "Poesia viva", do Anuário da Literatura Brasileira.
Tribuna da Imprensa (RJ) 19/6/2007