Completa 80 anos, nesta semana, Mario Soares, fundador dos tempos de modernidade portuguesa. Da Revolução dos Cravos, à plenitude do mandato presidencial, sua reeleição e do assento definitivamente civil da República, para além das fardas da transição democrática. De Mario Soares, estadista, o reconciliador e o garante da mudança, plantada sem fissuras sobre o país das nostalgias possíveis nesta emancipação de dentro, do sentido verdadeiro da comunidade, sobre o além-mar, que tem, no cidadão-presidente Mario Soares, seu dom do colóquio, sua indignação, sua vigília pelos direitos humanos, a personalidade legitimamente internacional da nossa fala.
Concentramo-nos, sim, em Mario Soares, o brasileiro, o confidente dos nossos chefes de Estado, senão o perene pedagogo da democracia, no trazer à conversação a verdade do poder, e a abertura do diálogo, vencendo a expectativa cansada da opinião pública na sua crítica aos homens do Planalto. Devemos-lhe toda dimensão da idéia social democrática, no seu desabrochar, com Fernando Henrique.
Mario Soares se dirigiu a Lula, na interrogação sobre todo o novo protagonismo brasileiro de após o 27 de outubro. Ou da escala internacional deste recado do PT, largado da condenação mofina aos velhos pactos regionais, à cata do protagonismo que saia da dobra periférica para a cobrança dos desequilíbrios mundiais; da erradicação da fome ao implante universal de um Estado de Direito.
Entre nós o antigo presidente português vinca, de vez, a sua palavra como guardiã do intento nacionalista numa sociedade em mudança, enfrentando as contradições neoliberais e hoje garantindo a perenidade do recado de Leonel Brizola, num mandato de geração, que a consciência, entre nós, do embaixador e ministro José Aparecido, consolidou, também num enlace genuinamente transatlântico.
Mario Soares, do cânon histórico, é, agora, e mais do que nunca, prospectivo. Apoiou, desde as suas origens, o delineio da sociedade alternativa, tanto o mundo de após a queda do Muro, viu-se exposto, pela queda das torres, ao desenfreio de um universo hegemônico. Vem de deixar Porto Alegre o novo octogenário, onde reforçou não só a marca internacional, hoje, indelével, da cidade, como insistiu sobre a urgência de um pôr-se à obra na boa utopia que junta hoje a capital gaúcha e Bombaim. As duas cidades balizam o outro caminho, que hoje já ultrapassou o estágio das minorias utópicas de sempre, na fermentação de um continuado e legítimo movimento universal da cidadania.
Ao mesmo tempo, nesta pregação o ex-presidente português é hoje um dos esteios mais importantes do que venha a representar em futuro próximo o ressurgimento do socialismo no Primeiro Mundo. Poucos terão como ele, no Parlamento europeu, apurado a renovação desta força social da mudança reptada pelo neoliberalismo como maré montante de um pensamento único, em verdadeiro contraponto à globalização urbi et orbi. O ex-presidente português figura hoje, ao lado de Jospin, Jack Lang ou Laurent Fabius em França, ou de Zapatero, triunfante na Espanha, como os referenciais para a busca do outro modelo, na federação emergente à Constituição de Bruxelas.
Ressoaram as suas recentíssimas palavras no novo pacto para um contrato universal da água no Brasil. Contagiou todas as frentes políticas no Rio Grande do Sul pela idéia matriz, e expressão única desta convergência, transatlântica, pelas diferenças de nossas raízes ocidentais. Reparte com Federico Mayor e Gianni Vattimo esta Presidência da Academia da Latinidade, que intenta responder ao "diálogo das civilizações", como o propôs o presidente Khatami. Foi a Teerã, ao Rio de Janeiro, hospedou a Academia, em Lisboa, enviou seu recado a Alexandria e ora apresta-se ao encontro de Istambul. Senhor do grande mar aberto, ouvido nas duas margens do lago, o octogenário de agora não é apenas um dos evangelistas do pluralismo do primeiro mundo. Mas a voz que, conhecedora dos interditos e franquias históricas, sabe por onde a inércia dos modelos, e dos fatos consumados, cede ao realismo utópico, e à manutenção das verdades de um futuro dos homens.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 17/12/2004