A aguda crítica de Demétrio Magnoli à campanha de Serra é também antológica quanto ao equívoco que marca a próxima ida às urnas. Não se trata mais de uma escolha entre situação e oposição, em nome de um metafísico direito de voto. O “berro da realidade”, a que se refere o analista, é de uma tomada de consciência nacional quanto ao nosso rumo político: ratificar, ou não, a continuidade do que está aí, como o único e desejável caminho do desenvolvimento sustentado.
Ser estadista é “contrariar o senso comum”, diz Magnoli, a merecer o pito de Maquiavel. Serra, se colocando ao lado da foto de Lula, no primeiro programa de televisão, responde ao senso histórico, aliado à realpolitik. O candidato escapou à fatalidade do jogo do velho Brasil, a tempo de fugir de pior resultado ainda em 3 de outubro próximo.
Identificar-se ao retrato do petista é entender o voto-opção, e não ir às urnas para repetir “escolhas pretéritas”, como quer interpretar o ilustre articulista.
Só uma visão intemporal da mudança imaginaria que, na corrida para se chegar à plataforma do desenvolvimento sustentado, poderia o país se permitir este desfrute idílico de “diferentes estradas que conduzem ao futuro”. Serra se deu conta, a tempo, do rumo dos próximos anos, e o sucesso do seu governo é a repetição do PAC de Lula, e da mão única do rumo à frente.
Falar de democracia, hoje, começa pelo reconhecimento da tomada de consciência popular — toda ao contrário do populismo — que vota, livre dos antigos donos do poder, e respondendo à melhoria social única desses dois mandatos, e que sabe, sobretudo, para onde não vai.
Choca a verborragia moralista de Magnoli, típica do ancien régime, ao falar do “autoritarismo” de Lula ou da sua “babel de sons indecifráveis”, quando sabemos, todos, como seria fácil a mudança da Carta para o terceiro mandato, ou o plebiscito para a mantença do presidente no poder.
É vão o apelo às bruxinhas para se augurar o perigo de um “Estado policial”, num governo que enfrentou os privilégios corporativos trazendo à barra dos tribunais a corrupção nacional em todos os seus poderes.
Só o velho país de dantes vê as eleições como um “baile de máscaras”, e o anti-lulismo não convence ninguém.
Impõe-se uma modernização de linguagem à ciência política, que sabe o que é voto e opção de voto, oposição e tomada de consciência, maturidade popular, negada por todos os passadistas que olham os petistas sempre no berçário do “pai da nação”, ou agora da “mãe do povo”.
O Brasil de Dilma vai precisar de contendores da qualidade de Magnoli. Mas fora dos estereótipos que lhe deixam num tempo social anacrônico, impermeável ao salto da mudança ou ao momento de fazê-lo ou perdê-lo. Não são os fantasmas do Estado policial que se deve temer, mas o freio eventual da mudança acelerada da expansão do produto social, da mobilidade coletiva e, sobretudo, da redistribuição da renda brasileira. A opção que merece o futuro passa pela essência da democracia de hoje, e do protagonismo do “povo de Lula”, a descartar de vez a retórica e os pequenos medos do dito país “bem”.
O Globo, 20/9/2010