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Maquiavel e o Código

 

A história da recepção do pensamento político de Maquiavel perfaz uma teia complexa de livros, congressos e debates. Há quem se especialize na recepção da leitura de Maquiavel no século XIX, na aurora da revolução russa ou no crepúsculo da era fascista da Itália. Se pensamos no Brasil, sobretudo com "O príncipe", Maquiavel tem domicílio incerto, na estante da esquerda e da direita, de ateus e religiosos, monarquistas e republicanos. Com leitores refinados ou ideólogos de terceira classe. Cito ao acaso Darcy Ribeiro, Pedro II, Golbery do Couto e Silva, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção, Rui Barbosa e Merquior. Tantos maquiavéis para múltiplos leitores, brilhantes ou desafinados.

É inadmissível, contudo, apresentar sua obra forte como catecismo de oportunistas e mapa-múndi dos sem caráter.

Nunca é demais lembrar que o adjetivo "maquiavélico" não se aplica, de modo algum, ao próprio autor, como quem busca reduzir-lhe o sistema a uma razão desprovida de piedade, a uma lógica perversa, onde não impera um só resíduo de emoção. Leiam as cartas, e procurem, com lente de aumento, a página inexistente onde se afirma que os fins justificavam os meios.

O príncipe já se apresentou ao mercado como livro de autoajuda, manual de gestão empresarial e estratégia de propaganda. Um Maquiavel prêt-à-porter, extremamente flexível, para leitores e práticas de caráter igualmente flexível e comprometido.
 
Semana passada, a parcela de deputados que vem desfigurando, através de mil emendas obscuras, o desenho ético do projeto do novo Código Florestal recebeu a pecha de maquiavélica.

Isso ofende nosso autor e promove aqueles senhores a um grau que absolutamente não merecem.
 
0 que falta a uma parte da Câmara dos Deputados é a herança de uma inteligência, ao passo que a força de Maquiavel reside num longo processo de reflexão acerca do poder e do Estado. Se com ele não podemos concordar de todo, devemos reconhecer, no entanto, o montante de sua dívida e ruptura com a tradição humanista. Para boa parte dos parlamentares, não existe natureza e pensamento, biosfera ou noosfera. Apenas a lucro-esfera.
 
Há em Maquiavel uma sólida compreensão da história, leitura que aclara o presente à medida que indaga o passado. Há deputados que não respiram senão o ar viciado de uma cronologia imediata. Vivem de um presente extrativista, sem passado ou futuro. E representam o atraso da nação e do Parlamento.

Nos dias que correm, quando muitos usam o marketing para camuflar o vazio de um programa ético, fazer de Maquiavel o porta-voz da recusa da filosofia moral é uma infâmia para quem elabora uma visão árdua e comovida dos destinos de uma Itália futura, à espera do príncipe: "Não posso exprimir com quanto amor ele seria recebido em todas as províncias, com que obstinada fé, com quanta piedade e com quantas lágrimas." E outras muitas passagens atravessadas por uma elevada temperatura moral.

Os que sonham plantar sem restrição, em plena selva amazônica, de Campo Grande até os Andes, ou de Ponta Grossa até a Patagônia, insistem em um capitalismo patético, agressivo e regressivo. E, se não fosse crime, não hesitariam um só instante em defender abertamente as vantagens da escravidão para a economia do país, como bem demonstrou, aliás, o padre Ricardo Rezende em "Rio Maria: canto da terra".

Devolvido Maquiavel a seu justo patamar, fiquemos atentos aos destaques e emendas ao Código Florestal. Não podemos aceitar uma faixa agrícola sem limites, nem tampouco uma anistia para os que praticam, protegidos pelo sentimento de impunidade, crimes de grande impacto ambiental.
 
Precisamos defender nosso futuro, sob o influxo de um alto sentimento republicano, que defina, com vigor, uma ética acerca do homem e da natureza. Porque o planeta é o mesmo para todos.

O Globo, 25/05/2011