Conto uma história, real, trazendo ensinamentos que valem para os dias de hoje. Tudo começou quando Tancredo Neves morria, era inevitável. No Ministério da Justiça convoquei, para reunião, quem poderia dar opinião sobre como José Sarney, vice-presidente, passaria a ser presidente da República. Na sala Consultor Jurídico do Ministério, Advogado Geral da União, ministros do STJ e do Supremo, comecei
– Vai haver problemas, na transição. E penso que deveríamos ter a mesma posição, uniforme, para contribuir com um pouco de paz em momento conturbado da nossa história. José Paulo Sepúlveda Pertence (então Procurador Geral da República e que nos deixou nesse domingo, Deus o tenha) perguntou
– Você tem sugestão?
– Tenho, cumprir a Constituição.
Expliquei. O presidente do Congresso anuncia que Tancredo morreu, declara vago seu cargo e convoca Sarney para prestar o Compromisso. Já não de vice, como tinha feito antes, agora como presidente da República. E o Congresso lhe dá posse. Todos concordaram. Pedi para imprimir o roteiro e entreguei a cada um. Morreu Tancredo. Quando fui explicar, ao primeiro jornalista, ele
– Dr. Affonso disse que não precisa. Sarney já é presidente, sem ser necessário mais nenhuma formalidade.
Affonso Arinos de Mello Franco era figura importante, no governo, mesmo sem ter nenhum cargo. Porque Sarney o ouvia. Pedi fosse localizado, estava em Petrópolis, falei com a cozinheira, única funcionária na casa,
– Dr. Affonso está?
– Fazendo a sesta.
– Por favor diga que precisamos conversar.
– O senhor me desculpe, mas chamo ele não.
– É muito importante, senhora.
– Perdão, doutor, mas nada é mais importante que meu emprego. E, se fizer isso, vou ser demitida.
Desligou. Inútil insistir.
À Polícia Federal, pedi fosse à casa para o acordar. E, às secretárias, que ficassem ligando, a cada cinco minutos, para saber se já podia atender. O que ocorreu antes de chegar a PF, graças a Deus.
– Dr. Affonso, que opinião foi essa que deu? Baseada em quê?
Fazia observações que eu contraditava, com a Constituição na mão. Após o que lhe dei ciência do roteiro que fizemos, naquela reunião. Ele
– Sua posição é escorreita (primeira vez, na vida, que ouvi alguém dizer essa palavra), meu jovem. Mas sabe o que vai acontecer? Quando o presidente do Congresso declarar o cargo vago, alguém do PT faz uma questão de ordem e a confusão vai ser muito grande. Ninguém controla.
Calado estava, calado fiquei. Até que completou, num conselho sábio,
– Meu filho, nunca se meta em confusão que você não seja capaz de resolver.
Aprendi mais essa. Ficou, então, como ele sugeriu. E deu tudo certo. Mas isso foi naquele tempo. Nos dias que correm, creio que seria diferente. O poder real, e sem limites, está no Supremo. Com a colaboração do TSE. Por cima da Constituição, ninguém dirá o contrário. Fazendo com que existam, hoje, dois tipos de cidadãos. Os protegidos pelo sistema, numa espécie de conivência explícita e cúmplice. E os outros, brasileiros comuns, nós todos.
Por pelo menos duas gerações não seremos capazes de operar um sistema capaz de combater a corrupção, no país. Sergio Cabral, condenado a 234 anos de prisão, passeia, livre e despreocupado, na praia de Copacabana. Fazendo selfies. E tem mais uma fila, por trás dele, dos que sabem não irão para as grades. E o Supremo tem responsabilidades, nisso.
Ainda quando alguém seja por acidente condenado, nem precisa se preocupar. Chegando lá em cima, no Tribunal mais alto, haverá sempre quem encontre maneira de tornar sem efeito suas condenações. Se for do mesmo time, claro. Que, não sendo, sai de baixo. O Brasil de hoje anda cada vez mais triste. O desalento corre pelas ruas. Então seja, fazer o quê? Como ensinou o dr. Affonso, melhor mesmo não nos meter em barulho que não somos capazes de resolver.