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Malabarista chinês

 

O silêncio eloquente do presidente Bolsonaro sobre a prisão de seu amigo de longuíssima data Fabrício Queiroz explicita a gravidade da situação. A depender do que os investigadores da Polícia Federal encontrarem nos celulares e documentos apreendidos em Atibaia, a situação pode levar a crise institucional a um desfecho que se prevê desde os primeiros escândalos do governo Bolsonaro.

O caminho para o impeachment parece ser inevitável, já está marcado no GPS político, só não se sabe a velocidade em que isso se dará. Que a vaca foi pro brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular  a distância do brejo e a velocidade da vaca. O centrão é especialista nesses cálculos, e tudo indica que seus membros vão partir com mais sede ao pote para aproveitar o que resta do governo.

Engano achar que alguém compra o centrão. Só aluga, e sem multa rescisória. Foi assim com Dilma, quando a situação ficou insustentável do ponto de vista político e econômico. O governo Bolsonaro caminha para essa impossibilidade diante da tragédia econômica de uma queda do PIB de 10%, cuja recuperação exigirá um esforço nacional de anos seguidos, impossível de se obter em um governo beligerante e errático como o que temos, com um presidente incapaz de unir até mesmo os seus.

A partir da crise, após a reforma da Previdência, as demais reformas perderam o timing político, ainda mais em ano de eleição. A situação é tão difícil que nem mesmo as condições mínimas para implementar um novo pacote social existem. Os governantes anteriores ao PT já  haviam criado diversos programas sociais, e a união de todos eles no Bolsa Família, sob o comando das prefeituras, foi uma jogada eleitoral proposta pelo então ministro Patrus Ananias, para substituir o fracassado Fome Zero, coordenado por Frei Betto, que tinha uma visão menos eleitoral e mais de ativismo político, uma tentativa de empoderar os líderes comunitários em substituição aos políticos locais.

O potencial dessa união de programas, que Ruth Cardoso preparava com o cadastro único e sem concessões políticas, alavancou o petismo, especialmente no Nordeste. Bolsonaro anseia agora criar o Renda Brasil, que seria o seu Bolsa Família ampliado, o que certamente daria uma alavancada em seu projeto político, mas a pandemia da Covid-19 estragou seus planos.

A distribuição da renda complementar de R$ 600,00 sustentou sua popularidade que começava a decrescer. Mas somente o Renda Brasil permanente pode lhe garantir a fidelidade desse eleitorado que não é dele. Mas a crise econômica dificilmente dará espaço para tal. Seria preciso um malabarista chinês para conseguir deixar no ar sem cair pratos tão diferentes no peso e no tamanho quanto centrão, acampamento 300 do Brasil, milicianos, rachadinha, economia liberal, democracia, militares, populismo. Bolsonaro é mais parecido com um rinoceronte em casa de louças.

Os apoios encarecem de um lado, e dão certo medo de outro. O risco ficou maior porque o presidente está fragilizado e a caminho de um impedimento. A investigação sobre Queiroz não vai parar no esquema de rachadinha, mas avançar para outras questões, como a relação com milicianos.

Após a prisão de Fabricio Queiroz, o presidente Bolsonaro está claramente na defensiva. Para se ter uma ideia das dificuldades, uma pergunta básica que não quer calar em Brasília: se Queiroz não estava sendo perseguido, por que estava escondido?

Um comentário povoa as investigações: quando foi encontrado, parecia estar em cárcere privado. Três inquéritos no Supremo Federal (STF) são direta ou indiretamente ligados a ele e agora as investigações sobre a ligação com Queiroz com sua família. Vai aparecer uma série de informações que formarão um quadro muito perigoso para qualquer pessoa, ainda mais para um presidente da República. O quebra-cabeça está ganhando forma, e nada ajuda Bolsonaro. Mesmo que não possa ser  julgado por atos cometidos antes do mandato, a análise dos fatos eventualmente pode deixa-lo enfraquecido politicamente, na popularidade e no apoio no centrão que, quando chega na beira da cova, não salta junto com o caixão.

O Globo, 20/06/2020