O “Filme B”, publicação dedicada ao que se passa nos mercados brasileiro e mundial de cinema, inicia seu boletim desta semana com o seguinte texto: “Nas ruas e no mercado, só se fala em uma coisa: Vingadores — Ultimato (Disney). O longa chegou feito um vendaval, varrendo dos cinemas os filmes em cartaz, e sem dar espaço para outros lançamentos. (...) O lançamento do filme ocorreu em 3.103 salas de 737 cinemas, isto é, em aproximadamente 92% do circuito total disponível no país”. A euforia é do texto original, os destaques são meus.
Como não está aí para criar polêmica, o redator do “Filme B” não avisa que em todo país do mundo existe uma regra, em geral na forma de lei, que impede esse evidente abuso de poder. Nos Estados Unidos, por exemplo, o país do capitalismo liberal, nenhum filme pode ser lançado em mais que 15% do circuito nacional. No Brasil, a ocupação máxima já foi de 30%, um exagero. Hoje não tem mais isso, o filme americano é lançado como quiser e fica quanto tempo quiser, numa mesma sala.
Isso talvez faça parte do que Delfim Netto (imagine!) chamou recentemente de “direita incultural”, com o governo combatendo defensores de conhecimentos que prometem a construção de uma organização social que pensa sobre seu próprio futuro. Que não estejam condicionados, como “formigas operárias”.
Antigamente ainda tinha a chamada “cota de tela”, o número de dias que cada sala teria que reservar para filmes brasileiros, a partir do desempenho de nosso cinema no ano anterior e de acordo com o discutido entre produtores, distribuidores e exibidores, a cada fim de ano. A cada fim de ano, a “cota de tela” era estabelecida pelo governo federal, assessorado pelo seu Ministério da Cultura, pela Agência Nacional de Cinema, ou por meio equivalente atuando no país naquele momento.
Havia também a “lei da dobra”, outro dispositivo de aplicação universal. Estabelecida entre nós a partir do final dos anos 1970, a “lei da dobra” obrigava os exibidores a manter o filme brasileiro em cartaz, enquanto ele estivesse alcançando a média de público semanal da sala. O filme brasileiro hoje é expulso da sala, mesmo estourando a boca do balão.
Essas medidas começaram a valer no Brasil há décadas. A “cota de tela”, durante o primeiro governo Vargas. A “lei da dobra”, no apogeu do regime militar inaugurado em 1964. Portanto, não podemos atribuir a existência delas a qualquer manifestação de ordem política primária. Elas visavam, como na fundação da Embrafilme ou na promulgação da Lei do Audiovisual, a dar condições de existência a uma atividade cultural e a uma indústria criativa indispensáveis ao país. E em vésperas de começarem a crescer.
Nenhuma das duas existe mais. A “cota de tela”, não se sabe por que, a Ancine não cuidou de atualizar ou simplesmente renovar. Já se passaram cinco meses, desde o final de 2018, e não se ouviu falar nela. A “lei da dobra”, nem se leva mais a sua vigência em consideração. Basta ver o que aconteceu com a chegada dos “Vingadores” e a imediata retirada de cartaz de filmes brasileiros de grande sucesso popular, como “De pernas pro ar 3”.
Para estimular nossa paranoia de abandono absoluto, basta olhar para a composição do novo Conselho Superior de Cinema, órgão regulador da atividade, administrado pela Ancine, nomeado e sob controle do Ministério da Cidadania. Ali, só se sentam conselheiros de grandes empresas americanas de cinema, além de representantes do sindicato deles, a Motion Pictures Association of America.
Repito uma pergunta que já fiz aqui, nesse espaço de jornal: o que é que o governo deseja de nossa cultura, de um modo geral, e do cinema brasileiro, em particular? Devemos desaparecer, como as Humanas estão sendo condenadas a desaparecer do Ensino Superior? É preciso desistir de nossa provável ilusão de que, através do cinema, ajudamos a criar uma nação com história e personalidade, com personagens e acontecimentos que reconhecemos como nossos? Nossos filmes, dedicados a discutir o que somos, devem dar lugar aos Vingadores dessa pretensão?
Apesar de tudo, não vou deixar de filmar como acho que deve ser feito no Brasil. Em 1962, o cinema brasileiro produzia uma meia dúzia de filmes anuais e nós, jovens universitários, fizemos “Cinco vezes favela”, sem um tostão furado. Mais tarde, eu já tinha feito filmes de grande sucesso, como “Xica da Silva”, “Bye Bye Brasil” ou “Quilombo”, quando Fernando Collor, de pura sacanagem e talvez por vingança eleitoral, acabou com o cinema brasileiro. Aí, em 1993, em parceria com a TV Cultura, fiz “Veja essa canção”, realizado em vídeo, com uma equipe menor do que a de uma filmagem de batizado.
Agora que, mesmo com o Brasil produzindo 160 filmes por ano, espero tão pouco da Ancine, não me custa nada repetir a experiência. Nem que tenha que acompanhar a geração do jovem cineasta Tomás Portella, que me disse outro dia: “Minha geração vai ter que cavar um túnel para poder ver a luz no fim dele”. Eu topo.