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A maior atuação de Fernanda Montenegro

 

Nelson Rodrigues deve estar mordendo a língua. Como poderia prever que ele próprio desmentiria uma de suas mais famosas afirmações, a de que “toda unanimidade é burra”? Não sei se existe hoje no teatro brasileiro uma unanimidade mais inteligente do que ele. Talvez só a sua maior intérprete, Fernanda Montenegro. Se alguém tem dúvida, recomendo viajar pelo monumental “Itinerário fotobiográfico” que ela acaba de lançar. São 500 páginas com cerca de 600 fotos, além de cartas, bilhetes, declarações, ilustrando uma admirável carreira de artista e cidadã. São 88 anos de vida e quase 75 de incessante atividade nos palcos, no cinema, na TV, no rádio. “Todos esses anos, convivi com mais de mil colegas, personalidades relacionadas à cultura brasileira em diversos campos. (...) Somos uma tribo de mil ou mais de um milhão de membros”. E ela sendo a sábia da tribo. A galeria começa com a menininha de um ano já posando sentadinha, e termina em 2017 com a atriz que se define “não como ativista, mas atuante”, de punho erguido lendo um texto em defesa do Teatro Oficina. Entre esses dois momentos, uma incomparável trajetória.

Ao chegar para a noite de autógrafos, um repórter me perguntou qual fora a melhor interpretação de Fernanda. Era quase uma pegadinha. Como eleger às pressas o desempenho máximo de quem se destaca em todos os gêneros da nossa dramaturgia? No teatro foram mais de 50 peças; na TV, dezenas de novelas, minisséries, especiais; no cinema, mais de 40 filmes. Optei por dona Mercedes, porque há pouco a vira em “O outro lado do paraíso”. Mas logo depois surgiram as inesquecíveis Zulmira, de “A falecida”, Romana, de “Eles não usam black-tie”, Dora, de “Central do Brasil”.

Mas se me tivessem feito a mesma pergunta na saída, eu não hesitaria em responder que acabara de assistir à talvez melhor atuação de Fernanda — Fernanda por ela mesma. É que entre uma e outra sessão de autógrafos, ela manteve um bate-papo informal, divertido, comovente com sua filha Fernanda Torres e Danilo Miranda, diretor do Sesc SP.

É possível que agora eu esteja misturando o que li no livro e o que ouvi aquela noite no teatro Sesc Copacabana. Para quem se caracteriza pelo recato, que evita expor sua vida privada, foram agradáveis revelações, como a foto de 1953, em que ela aparece toda de branco, a caminho do altar, com a legenda “Esse foi o início de 60 anos de união”. E uma tocante jura de amor: “Se não fosse a presença de Fernando, esse companheiro único e definitivo na minha vida, eu não seria eu”.

Como diz a Nanda, “minha mãe nunca esteve na moda e nunca foi deslumbrada”. A não ser — ouso acrescentar — por seus dois amores, Fernando e o ofício de atriz.

O Globo, 25/08/2018