A Queda da Bastilha fez da França a matriz do próprio conceito moderno de revolução e da ruptura das instituições, nascidas de uma consciência profunda da perda da sua legitimidade. A guilhotina de Luiz XVI marcava a virada de página dos absolutismos esclarecidos do começo do Estado-nação de nosso tempo. Paris, de novo, foi protagonista de Maio de 1968, a que, agora, quer se associar, com o mesmo chicote inesperado da insurreição, a força dos incêndios repetidos, que passaram da subúrbia parisiense a ameaçar mais de uma centena de cidades francesas. A sucessão de queimas de automóveis, num braseiro sistemático, sem líderes nem palavras de ordem, até onde indica um desses movimentos de um inconsciente social, tectônico, sublevado? Não estamos mais diante de uma intelligentsia vigilantíssima que levou ao século da enciclopédia, à instituição do ideal político da liberdade, igualdade e fraternidade.
A França tem a tessitura social mais rica da Europa, a evidenciar a transparência dessa revolução à obra e a criar o espaço natural para essas outras rebeldias. É a consciência arraigada do estado de direito, do respeito às liberdades e da força da cidadania, tanto para o protesto maduro contra as instituições quanto para saber quando deve parar. E esse marco dependerá do reconhecimento do peso dos atores que foram à comoção das ruas. Em 1969, o estudantado, a partir das ruas da Sorbonne, levou o cutelo das gerações ao seu melhor fio.
Respondeu à sensação de obsolescência do regime instalado das liberdades. A nova violência escandalizava mais que destruía, e o descalçamento do Quartier Latin traduzia essa rebeldia de dentro, do nervo de uma desatualização geracional, e também do até onde iria a chienlit, o uivo das ruas a marcar o fim do gaullismo. Ou do peso do status quo, diante da exigência de uma nova consciência dos valores nacionais e da mudança.
A esquerda, inclusive, levou mais tempo que o centro em reencontrar o que seria a presença da França na alternativa ao modelo neoliberal, na adequação do socialismo ao mundo de após a Guerra Fria. O que incendiou o subúrbio parisiense agora foi a própria transposição do colonialismo ao centro do sistema; foi o sentimento de exclusão dos milhões de norte-africanos, turcos, vietnamitas, que exatamente são estrangeiros anônimos, sans papiers, a causar o enfarto da megalópole sem, inclusive, atingir o centro da capital.
A insatisfação é a de um estado de espírito em que a França do universalismo dos valores da revolução sofre a convivência com a diferença, e não a reconhece. Aceitou a migração das periferias, mas desconhecendo as condições de marginalidade, de miséria, desemprego e violência, em que se reproduzia a velha contradição dos mundos coloniais, na sua empáfia civilizatória.
A violência que levou esse inconsciente social a pôr fogo nos carros das calçadas dos bairros islâmicos tem a força dessas tomadas de consciência tão atrasadas quanto incontroláveis. E não se definirão sem quase que um novo pacto social, pelo qual a França faça um mea culpa da própria arrogância-cidadã, reconhecendo as diferenças dos que acolheu, e da política de integração, que deverá acompanhar o ingresso no paraíso e a tolerância talvez, ainda imperial, com a penetração dos clandestinos culturais nas suas muralhas.
A conflagração não transpõe apenas o contraponto colonial, mas o acelera. Põe em causa essa contenção política de agora da França, devolvida dos velhos padrões estatais, ao se fechar aos horizontes definitivos do continente integrado. O país que derrubou o projeto de Constituição européia é o que cedeu ao ranço paroquial na memória característica da velha nação. Reage para mostrar que a identidade coletiva se faz tanto da mudança, quanto do não deixar-se levar pelo roldão inovador.
Os argelinos, senegaleses ou turcos viveram a retranca de um país que se furtou à grande moção do mercado maior, pelo ''não'' ao plebiscito pró-Europa. O Maio de 68, que desprovincializou a França, repete-se agora para lembrar-lhe que a sua nova população periférica veio para ficar. Os sans papiers não querem ser cidadãos de segunda classe. A onda pede desaguadouro maior e definitivo. E a França sabe que só se a distende se o alvo dessa grande maré for uma Europa integrada e não o centro de Paris, guardado pelos cachorros e os cassetetes eletrônicos da polícia de Sarkozy.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 30/11/2005