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Machado de Assis ou Lima Barreto?

 

Semana passada foi inaugurada na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio, uma exposição absolutamente imperdível: mostra-nos a vida e a obra de Machado de Assis. O local e o “timing” não podia ser mais adequados. A ABL é a casa de Machado – o escritor foi um de seus fundadores e o primeiro presidente – e este ano, como todo mundo sabe, assinala o centenário de seu falecimento. Embora seja hoje reconhecido, inclusive no exterior, como o grande escritor brasileiro, Machado permanece, sob certos aspectos, uma figura intrigante. De sua infância, particularmente, sabe-se pouco; mas o que se sabe é suficiente para despertar em nós uma comovida admiração. Descendente de escravos, filho de pais pobres, Machado nasceu no morro do Livramento, uma criança fraca, doente (sofria de epilepsia, enfermidade para a qual não havia à época tratamento eficaz). Perdeu a mãe ainda criança, mal freqüentou escola, se é que isto aconteceu, e muito cedo estava trabalhando. Além disso era mulato, numa época em que havia escravatura e na qual, por conseguinte, o preconceito era violento; e, por último, gaguejava. Que este menino tenha superado tudo isso para tornar-se um grande escritor é uma verdadeira lição. Dá, sim, para superar obstáculos, desde que os nossos sonhos nos sustentem.


É preciso dizer, contudo, que Machado não é, nem foi, unanimidade. Muitas crítcas lhe foram feitas, inclusive de natureza política. Tomem o caso de minha geração. A gente lia Machado na escola. Era uma obrigação curricular que, como se pode imaginar, dificilmente estaria associada àquilo que Roland Barthes denomina de “o prazer do texto”. Mesmo assim, a gente gostava da obra machadiana. Quando, porém, terminávamos a escola, tínhamos uma outra visão do escritor, uma visão política que para jovens militantes estudantis (meu caso) era decisiva. Esta visão política dividia o mundo e as pessoas em direita e esquerda, reacinários e progressistas. Machado, assim nos diziam, era de direita. Por que? Em primeiro lugar, porque sua literatura não era engajada, falava das emoções humanas (o ciúme de Bentinho, por exemplo) mas não da opressão, da miséria; muito menos estimulava a luta de classes. Apesar de mulato, Machado não ficou conhecido como abolicionista. Trabalhava no governo imperial, onde tinha um alto cargo e não fazia oposição.


Se Machado era reacionário, quem era o progressista? Para isso, nossos gurus esquerdistas tinham uma pronta resposta: Lima Barreto. Contemporâneo de Machado, mulato como ele, Lima era no entanto um contestador, um escritor que recorria à sátira e à ironia para fazer ataques demolidores contra o estabelecimento. Mais: era um nacionalista ferrenho, que chegou a fundar uma liga contra o futebol para combater o que ele considerava um esporte dos colonialistas ingleses.


Ou seja: tínhamos de escolher. E em geral escolhíamos, claro, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma. A partir de certa idade não líamos mais Machado, assim como, no RS, não líamos Érico Veríssimo, também considerado reacionário, porque não era comunista, e porque tinha vivido alguns anos nos Estados Unidos, como diretor cultural da Organização dos Estados Americanos: era, pois, um “agente do imperialismo ianque”.


O tempo passou, o stalinismo foi para o espaço e com ele todas as sectárias divisões. Redescobrimos Machado de Assis, constatamos sua grandeza. É um autor universal, e isto explica o respeito de que goza nos Estados Unidos (e que nada tem a ver com imperialismo). Mais: Machado e Lima Barreto não são excludentes. Representam visões originais de uma mesma realidade. Dois grandes escritores, capazes de transformar sua sofrida existência em magistral literatura. Temos Machado, temos Lima, não precisamos mais escolher. O Brasil melhorou. O mundo melhorou.


Correio Braziliense (DF) 4/7/2008