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A luta pelo "nunca mais"

 

O novo livro de Arnaldo Niskier, "Branca Dias, o martírio", é dos mais contundentes de nossa literatura sobre a Inquisição no Brasil. O clima de desassossego, criado pela presença das Visitações do Santo Ofício em Pernambuco, na Bahia, na Paraíba, no Maranhão, transformava a prática da religião, por parte dos judeus, numa atividade clandestina e criminosa.


Tendo por centro a figura, verdadeira e mítica, da Branca Dias (pois teria havido mais de uma, com o mesmo nome), a resistência da mulher judia chegava a proporções inimagináveis, com a casa da família perdendo seu ambiente próprio e passando a ser uma sinagoga, passando a ser o centro de um culto oculto. A mulher assumiu, assim, a frente de uma luta que iria até a invasão dos holandeses em 1630, a partir de quando a vida assumira, no Brasil de então, um caráter normal.


Autor de um excelente livro sobre o padre Antonio Vieira e a Inquisição, volta Arnaldo Niskier a tratar, com a sua sabedoria de estilo, do assunto que é dos que deixaram marcas mais profundas no começo mesmo de nossa história. Os que hoje lutamos para termos um Brasil justo, com uma população consciente de sua presença no mundo - e, portanto, consciente de sua história - sabemos que essa consciência plena só se conquista através do conhecimento de nosso passado.


No livro de agora, Arnaldo Niskier nos apresenta uma visão ao mesmo tempo realista e analítica do Brasil tal qual era nos primeiros tempos de sua existência. Precisamos saber que o Santo Ofício, além de prender cristãos novos, também acusava de hereges pobres índios e mamelucos, deles exigindo que se definissem como cristãos novos e velhos.


No fundo, a presença da Inquisição no Brasil foi também surrealista, mas de um surrealismo de terror, que matava gente para lhes roubar o dinheiro e as jóias, as casas e o gado, a vida e a memória.


Os detalhes do dia-a-dia de uma sociedade subordinada à crueldade criminosa de um órgão como a Inquisição, que não precisava dar satisfações a pessoa alguma, a não ser aos chefes de cima, que pensavam exatamente de modo igual, ou pior, ao dela - esses detalhes, divulgados hoje, podem parecer incrivelmente impossíveis. Era tese da Inquisição que os judeus tinham rabo, mas rabo de verdade, ou pelo menos um "rabinho" que eles faziam de tudo para esconder. A simples idéia de pensarmos hoje que uma parte da população acreditava nisto permite que se veja o que significava para um perseguido de então estar à mercê da Inquisição.


Diante da memória de Branca Dias, precisamos lembrar-nos de que essa luta permanente viria culminar, no civilizadíssimo século XX, no crime coletivo cometido por toda uma nação, poderosa e aparentemente culta, que simplesmente inventou campos de concentração para homens, mulheres e crianças da mesma raça de judeus do tempo da Inquisição na Espanha e em Portugal. Vejam: isto aconteceu há menos de um século, num tempo em que muitos de nós acompanhamos passo a passo as imagens de judeus, macilentos e com espanto no rosto diante do que estava acontecendo. Isto foi há pouco tempo. O que nos faz pensar: pode acontecer de novo.


O livro de Arnaldo Niskier, "Branca Dias, o martírio", faz parte da luta para que isto não aconteça de novo. Inquisição, nunca mais. Campos de concentração, nunca mais.


Como informação didática, da maior importância para quem acabou de ler a história da Inquisição nos países ibéricos e no Brasil, apresenta no livro uma lista preciosa chamada "Cronologia histórica da etnia judaica Ibero-Brasileira", com uma anotação relativa ao ano de 1147, quando a cultura judaica predominou na Espanha, até 1855-1900, quando começou a leva de imigrantes judeus chegando ao Brasil.


"Branca Dias, o martírio", de Arnaldo Niskier, é um lançamento da Editora FMU, de São Paulo, e será lançado na Academia Brasileira de Letras depois de amanhã, às 18h. Carlos Heitor Cony escreveu o texto para a quarta capa, ilustrações de capa e entrada de capítulos de Mário Mendonça. Prefácio do professor Edevaldo Alves da Silva. Ilustrações de miolo e quarta capa de Cláudio Duarte. Capa de Cleber Soares e projeto gráfico do miolo de Isio Ghelman


Tribuna da Imprensa (RJ) 12/12/2006