Eis um livro que mostra a dimensão real de Antonio Vieira, do Padre Antonio Vieira, na formação deste País que é nosso. Nascido em Lisboa, era ele na realidade cidadão espanhol, já que Portugal pertencia, naquele começo do século XVII, à Espanha. Seria melhor chamá-lo simplesmente de o brasileiro Antonio Vieira.
Chegou à Bahia aos sete anos de sua idade. Ali passou fase já consciente de sua infância, ali estudou suas primeiras letras, ali ingressou na Companhia de Jesus, ali recebeu as ordens sacerdotais, ali pronunciou seus primeiros sermões e foi, assim, insuflando, nos brasileiros de então, um modo novo de ver as coisas e de examiná-las.
O livro de Arnaldo Niskier, "Padre Antonio Vieira e os judeus", aclara momentos de uma vida que foi uma luta contínua, contra a inquisição, contra a escravidão de negros e de índios, contra a burrice geral dos governantes, contra os campos de concentração antecipados em que foi preso. Aquele, o século XVII, foi um período emblemático para o Brasil.
Havíamos caminhado cem anos além dos tempos de Cabral e de Anchieta, fizéramos a terra produzir, com o açúcar atraindo a atenção, nem sempre desejável, de outros povos, ocupáramos uma boa parte do que seria o Brasil de hoje e, bem no final dos Setecentos, surgiria o ouro de Minas Gerais.
Acompanha Arnaldo Niskier os passos de Vieira, cuja presença no mundo ocupou quase todo o século (de 1608 a 1697) e, além do Brasil, incorporou à sua experiência e ao seu labor, não só Portugal, mas também a Holanda e a Itália. Vieira enfrentou a oposição dos poderosos, a incompreensão e ódio de parte da população média de então, ao se colocar abertamente na linha de defesa da nação de Israel, dos cristãos-novos, dos judeus enfim. Empenhou-se de modo constante nessa luta e foi por ela preso.
Em 1º de outubro de 1665 (estava ele com perto de 60 anos), viu-se encarcerado em Coimbra, num cubículo de 3,30 m por 2,64 m. Ali passaria mais de dois anos (precisamente 813 dias). Ali escreveria sua defesa - "... sem apontamentos (segundo informa João Lúcio de Azevedo), sem livros, sem amanuenses, entre os assaltos da doença que já o minava antes de ser preso, dispôs, passou ao papel e tirou a limpo a sua apologia que consta de 283 páginas de letra apertada onde alegava textos e citava autores e seus lugares, estando destituído de livros, a não ser o breviário e, mais tarde, a Bíblia."
Descreve Niskier a viagem de Vieira à Holanda, onde esteve com Rabinos e, depois, a Roma, onde se tornou o pregador religioso oficial da rainha Cristina, da Suécia, que ali mantinha um salão cultural famoso. Nas palavras do próprio Vieira: "O que se passa em Roma é que a Rainha da Suécia, contra todas as minhas repugnâncias, e com obediência expressa do Padre-Geral, me tem nomeado seu pregador e eu fico encarregado de fazer na sua capela todas as pregações."
Participou também Vieira, nos salões da rainha Cristina, do começo de um movimento poético, e dos árcades, em que mais tarde estaria o nosso Cláudio Manuel da Costa, que fundaria, já no final do século XVIII, em Vila Rica, uma Arcádia chamada "Colônia Ultramarina". De Roma voltou Viiera vitorioso porque chegou a Portugal com um Breve, emitido pelo Papa Clemente X, datado de 17 de abril de 1775, que Niskier define como "isentando para sempre o padre Antonio Vieira da jurisdição dos inquisidores de Portugal, fazendo com que ficasse sujeito única e exclusivamente à Congregação do Santo Ofício em Roma."
É numerosa a documentação, reunida em "Padre Antonio Vieira e os judeus", mostrando a luta permanente de Vieira em favor de sua terra e do Brasil, sempre argumentando que Portugal e Brasil precisavam da contribuição dos judeus, em trabalho, talento e espécie, para que se garantisse o desenvolvimento dessas duas regiões do mundo. Declarou sua "fidelidade ao Brasil, a quem, pelo segundo nascimento, devo as obrigações de pátria".
A luta de Vieira se dirigiu também contra a corrupção. Veja-se como este trecho seu parece dirigido a corruptos de hoje: "Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros roubam debaixo de seu risco ,este sem temor nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados. Estes furtam e enforcam".
Na luta multi-secular que, de Torquemada a Hitler e outros ditadores de nosso tempo, muitos escritores empreenderam, devemos colocar Vieira como herói maior. O gênio que deu novo significado à língua portuguesa, lutou como ninguém.
Quando escreveu uma "História do futuro", livro que prenuncia a ficção científica, previu uma época cheia de felicidade para Portugal e a gente de língua portuguesa. No final de sua vida, aproximando-se dos 90 anos, cuidou de organizar os seus sermões que, publicados, chegam hoje a 12 volumes.
"Padre Antonio Vieira e os judeus", de Arnaldo Niskier, é livro de leitura obrigatória. Nele está uma das melhores objurgatórias já feitas contra o preconceito. Prefácio de Antonio Carlos Vilaça. Projeto gráfico e capa de Isio Guelman. Lançamento da Imago Editora.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 14/12/2004