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Lugar de fala

 

A necessidade de existência de regras bem definidas de comportamento de autoridades de vários níveis ficou evidenciada nos dias recentes por casos de diversas naturezas. A surpresa com que foi recebida a divulgação de um código de conduta pela Suprema Corte dos Estados Unidos, com o objetivo de impedir que se perpetue a imagem na opinião pública de que aqueles nove magistrados se sentem acima dos cidadãos comuns, inatingíveis pelas leis, mostra como mudaram os tempos desde sua fundação, em 1789.

Hoje, mais do que nunca, exigem-se dos ocupantes de cargos públicos transparência e comportamento probo, que não podem ser apenas presumidos pelos cidadãos, mas têm de ser comprovados no cotidiano. Essa necessidade já estava explicitada pelo imperador Júlio César em 62 a.C., ao dizer: “A mulher de César, não basta ser honesta, tem de parecer honesta”. De lá para cá, nossos césares convenceram-se de que, por si sós, são respeitáveis e respeitados, por isso é necessário que se produzam normas e regras de conduta nos diversos níveis de poder.

Da mesma maneira, um mal-entendido no âmbito do Ministério da Justiça levou à politização da presença de uma condenada por lavagem de dinheiro do tráfico de drogas em audiência oficial. Conhecida como “dama do tráfico” em Manaus, Luciane Barbosa Farias, mulher de “Tio Patinhas”, comandante de uma facção criminosa, foi representando uma ONG de defesa dos direitos dos presos ao Ministério da Justiça em companhia de uma ex-deputada.

A presença da insólita personagem causou rebuliço depois de denunciada pela imprensa, logo o próprio ministro Flávio Dino foi atacado de diversos lados, fogo nem tanto amigo do PT, fogo inimigo dos bolsonaristas. É claro que houve falha da equipe do ministério, pois alguém com tal alcunha, processada por lavagem de dinheiro do tráfico que o próprio marido comanda, não é presença aconselhável num ministério que tem como principal tarefa no momento combater milícias e tráfico de drogas e armas. Parece até piada a alegação de que a “dama do tráfico” manauara tem “lugar de fala” no caso, por isso foi escolhida para a audiência.

O erro flagrante foi admitido por um secretário do ministério e por uma portaria, publicada imediatamente no Diário Oficial, com regras para as audiências ministeriais. Mas daí fazer a ilação de que o ministro Flávio Dino tenha ligações com o tráfico de drogas é pura baixaria política para atingi-lo, justamente no momento em que é cogitado para a vaga da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal.

A oposição aproveitar um erro primário da burocracia do ministério para criticar o governo é do jogo. Mas o que está em jogo, na verdade, é uma disputa de poder dentro do PT mais ampla, que inclui, além da vaga no Supremo, a eventual substituição de Dino no Ministério da Justiça e ainda a possibilidade de criação do Ministério da Segurança Pública. Outro ministro, o advogado-geral da União, Jorge Messias, é o candidato preferido pelo PT.

A demora do presidente Lula em indicar o sucessor para a vaga no STF contribui para aumentar a fogueira das vaidades no entorno do Palácio do Planalto, o que também explicita o poder do presidente, parte dele já perdida nas disputas com o Congresso.

O protagonismo da primeira-dama Janja da Silva, cada vez mais exibido, como aconteceu na chegada dos brasileiros que estavam em Gaza, subiu também o sarrafo do nível de interferência nas escolhas presidenciais. Onde antes influenciavam poucos ministros, alguns até discordando das posições de Lula, hoje atuam instâncias mais próximas do presidente, e os candidatos a cargos também.

 

 

 

O Globo, 16/11/2023