Primeiro, foi German Lorca. Uma semana mais tarde, Eva Wilma. Desta, falarei depois. Como diz Zezé Castelli, filósofo do cotidiano, a gente vai arrancando as figurinhas do álbum uma a uma. Até que chega o momento em que a nossa figurinha é retirada. Não esqueço a frase inicial do primeiro volume da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård: “O coração bate, bate, bate e então para”.
Há duas semanas, escrevi aqui sobre padarias e minha foto na CPL. Nove da manhã, Lorca me ligou. Naquele momento, perguntei: quem é? Apesar de a voz dele ser inconfundível. E ele: “Sou eu, o poeta”. Ele emendou: “Quando iremos comer um pão na chapa na sua padaria? A CPL não conheço. Tenho de fazer um livro sobre padarias nesta cidade”. Conversamos um bom tempo, lembrando os bacalhaus que comemos junto com José de Souza Martins, o homem que me explica a história de São Paulo e do Brasil e me deixa claras situações nebulosas deste País. Lorca, Martins e eu fomos um dia ao Bacalhau Vinho & Cia, na Barra Funda, e ele contou histórias sobre suas fotos, foram lições sobre o olhar. Depois, no Rancho Português, na Avenida Bandeirantes, foram poesias sobre como fotografava. Tudo parecia tão simples e estávamos programados para o Rancho 53, na Castelo, para a Adega Santiago e, quando o dinheiro poupado fosse suficiente, íamos para o La Bela Sintra. Passados os 95, German era bom no garfo, a conversa no bom vinho, no que era invejado pelos filhos dele, que nos acompanhavam, pelo Martins e por mim. Foi uma amizade tardia, mas agradeci o momento que nos cruzou.
O Ibirapuera era uma das atrações do IV Centenário de São Paulo, festa que prometia ficar na história. Ao menos na da minha vida. São Paulo era o sonho, utopia, a Paris possível. Cidade dos 300 cinemas, teatros, livrarias, anúncios luminosos (eu tinha saído da adolescência), do TBC, do Nick Bar, Vera Cruz, Cinemateca, MAM, restaurantes, bares, anunciava-se o festival internacional de cinema. Aquela estranha construção, o Planetário, tinha um formato inusitado. Pensei: quem será este menino tão pequeno e que já está onde eu sonho estar?
Tempos depois, descobri, o garoto levado pelas mãos da avó, era o filho de German Lorca, fotógrafo de nomeada, cujo assunto sempre foi esta cidade, sua evolução, mutações. Escrevi uma crônica sobre a foto e o impacto que me causou e Lorca entrou em contato comigo. Afável, amável, humorado, ficamos amigos, ele me ligava para comentar meus textos sobre a cidade, nos encontrávamos, comemos muito bacalhau por aí. Até o dia em que fui com José de Souza Martins à exposição 70 Anos de Fotografia de Lorca, a última que ele fez em São Paulo, no Itaú Cultural. Graças a Eduardo Saron (há tanto tempo Saron e eu nos conhecemos e trocamos dez palavras, acho isso incrível; coisas de São Paulo, ou minha? Já que sou um esquisitão?), Martins e eu tivemos o privilégio excepcional de termos tido o próprio fotógrafo nos explicando cada foto, cada momento, como e porque foi tirada. Jamais esquecerei. Era como se fosse Portinari revelando como pintou seus quadros ou Guimarães Rosa nos abrindo a gênese de Grande Sertão. Há duas semanas, falamos muito, marcamos um almoço. Horas depois, soube de sua morte. Pode ser que seu último telefonema tenha sido para mim. Isto me arrepiou. Neste momento, lamento: que livro as padarias de São Paulo perderam. Guardo de Lorca uma frase tirada do site do Itaú: “Eu me emociono ao ver uma cor bonita, uma criança fazendo isto ou aquilo, um rosto de mulher, uma luz recortada, uma sombra acentuada. Tudo isso me dá a sensação de uma nova existência”.