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A longa jornada

 

Cedo hoje com muito prazer o espaço da coluna para minha amiga e colega da Academia Brasileira de Letras, escritora Nélida Piñon, dentro da campanha #AgoraÉQueSãoElas. Nélida, em 1996, foi a primeira mulher a presidir a ABL, justamente no seu centenário.

Ninguém melhor, portanto, para dar testemunho dessa longa jornada das mulheres.

“No passado, ungida pelas tarefas domésticas, a mulher, já pelas manhãs, e até muito tarde, aproveitando a luz natural, ia bordando no tabuleiro sucessivas versões da história que os homens da casa lhe contavam, e que ela, sob o impulso de perplexa melancolia, reproduzia com fios coloridos e a cada movimento da agulha.

E enquanto levava ao forno uma torta infiltrada de essências orientais, mais viajadas que ela, redigia suas receitas com letra apaixonada e certo maneirismo literário. Na expectativa talvez de participar da poética da realidade e vir a ser lida um dia com o mesmo tremor e sensação de delícia que certos poemas lhe provocavam.

Com os séculos, ao já não lhe bastar a resignada placidez do lar, ou responder pela perpetuação da espécie, lutou ela por ser protagonista dos caprichos do cotidiano e do empolgante mistério da vida. Afinal, defrontada com os empecilhos sociais, sentia-se uma estrangeira incapaz de balbuciar as palavras de uma nova língua.

Após séculos de frustrações, exilada na casa, a mulher passou a engrossar a procissão dos aflitos. Nas ruas, nos escritórios, atrás do balcão, acuada pelo dever de escalar os ilusórios degraus do poder, sua consciência urgia por um decálogo que expressasse sua natureza profunda, e a orientasse quanto ao papel social a assumir.  Enquanto temia que os avanços profissionais lhe roubassem preciosas conquistas afetivas.

Era mister, porém, enveredar pela  linguagem da arte e imergir na própria memória milenar que abrigava mulheres lendárias que, a despeito do perene mutismo, cobravam o papel relevante  que lhes era devido desde a fundação do mundo.

Tal memória, que enriqueceu a linguagem, habitou sempre a terra. Esteve na Bíblia, ressentiu-se com o Deus hebraico, que a dispensara como ativa interlocutora. Em Tróia, com o astuto Ulisses. Sofreu com o descrédito que Apolo impingiu à Cassandra, a fim de suas profecias jamais serem acatadas. Recriminou a contraditória Artemis que cortava os cabelos rentes das donzelas na noite de núpcias, como sinal de que  lhes extirpara   qualquer traço de rebeldia. E na tenda de Júlio Cesar presenciou como ele, despojado da imortalidade, assumiu sua ambiguidade.

Uma memória, enfim, que arquivou as evidências do mundo milenar, o monoteísmo, a marcha das heterodoxias, o sagrado e o profano.  E que nômade, no início, ocupou afinal os espaços da casa, de onde recolhia as sobras da história. Até tornar-se ela a matriz geradora da intriga narrativa, capaz de albergar a fala oral e as metáforas. Mas quanto mais esta memória encerrava-se nos limites do privado, sem participar do cotidiano vasto e complexo, melhor uso a mulher fazia dos subterfúgios, do simbólico. A ponto de se tornar alguém cujo mistério requeria decifração poética.

Alijada, porém, da cultura normativa, a mulher concebeu uma realidade que de fato lhe chegava pela metade. Como consequência, acumulou um saber clandestino de grande valia, do qual os narradores dependiam para se apossar dos personagens e frequentar o enigma literário.

Esta memória, de registro poético vedado, encontra-se contudo  nos livros que ela não escreveu. E isto porque os narradores, ao criarem, dependiam da matéria guardada no coração feminino, e que consistia nas confissões feitas no leito de morte, nas dores do parto, nos sentimentos universais, que só a mulher, na condição de mãe, amante, carpideira, saberia ditar.
 

É razoável, pois, afirmar que Homero, Dante, Shakespeare, Cervantes, Camões, muito devem à mulher,  co-autora de suas obras.

Viva #AgoraÉQueSãoElas”

O Globo, 08/11/2015