A chegada ao fim do ano é já a de uma prática política que mereça o seu prêmio, sempre mal lido pelos panteões sôfregos do sucesso de um governo. Pela bolsa-família e sua irradiação, pela acolhida reforçada de Lula no Brasil de base, pela perda de pé das dramatizações mediáticas, o real concreto parece garantir-se do passo adiante. Apesar do que até diga Lula, em função do que porta como testemunho da sintonia medular de um outro Brasil e força da sua dessofisticação às vertigens, agonias do "Brasil-bem", indignado, repetido.
O "Lula-lá" não é garantia do passo adiante. Mas o presidente garantiu o recado que lhe compete, mesmo à margem do seu discurso. Ou do que, mais que sabe, sabe o País que o respalda.
A presente crise política vivia, até há pouco, respaldada por um paradoxo-base: implodia o PT diante do País, mas se mantinha segura a popularidade de Lula. As pesquisas de meados de agosto de 2005, porém, mostraram que esses índices de apoio ao presidente haviam caído e vulnerado as perspectivas, dadas como certas, da reeleição.
A pergunta, portanto, é nova: a desconfiança da chamada "opinião pública" começa a penetrar o País de base, e suporte de Lula? Até onde ela mina a virada de página do Brasil? É contaminação restrita desse País primordial, contível, ou a crise chegou ao inconsciente social, dissolvendo a diferença que representa a opção eleitoral petista?
O essencial, neste momento, é saber se a corrupção endêmica, sistemática, invalidou a expectativa de mudança ou se ela ainda se mantém no âmbito do a-que-veio Lula e da lógica mais funda que sancionou a vitória de 2002.
A se confirmar isso, não se trata apenas de uma oportunidade que a Nação pode ter perdido, mas a desconstituição da instância, única, de associar-se o País desmunido ao Brasil instalado. E nesse caso Lula não pode esquecer que o mandato pertence a um inconsciente coletivo e ele, que porta quase que sonâmbulo o seu encargo, só logrará levá-lo adiante, independentemente do partido, tanto quanto mantiver a força simbólica do impulso primordial.
Contudo, não se retorna a essa expectativa, em que se decantaram os últimos 30 anos da mobilização petista, como se se pudesse adiar a esperança de base ou como se a autenticidade do partido ficasse vinculada à própria purificação ou à sua refundação. A "razão de ser" dessa alternativa permanece, toda, na dependência de Lula.
Em meio à reivindicação moralista, o partido se volatiliza, esquecido de que o País não pode ficar à mercê do eterno retorno à pureza das repartidas? Não há um recomeço para o PT, tampouco poderá retomar a tarefa, a não ser que, de fato, retorne à radicalidade da proposta de mudança. A história não se descontamina para avançar, mas nasce de todas as suas contradições. Há um PT já, ou um PT nunca, esfacelado em tantos corpúsculos ou futuros partidos nanicos, devorados pela detergência de uma ética desligada de seu compromisso coletivo.
É este, ainda, o momento de refundação, em que se arranca para um novo país e em que, de vez, se definem os supostos de seu sucesso. E não há como ver o futuro apenas, tal como ressaltam os tucanos, como o harmonioso jogo de alternâncias em que se avança e se recua na história, aceitando-se, em última análise, uma inevitável reimersão no status quo. Esse seria o cenário para a mudança, além das eternas condições favoráveis para a esperada alternativa à inércia do presente.
Não se reconhece, entretanto, a nitidez desse rumo no passo à frente do Planalto. Avança com ou sem o PT, para a conservação de seu ímpeto junto ao País de base? Tal dilema passa pelo decidir-se entre aceitar a crítica do moralismo para relegitimar o partido que vá adiante ou, realisticamente, descartar as purgas e se consolidar pelo passo à frente, confiando na safra colhida pela estabilidade a qualquer custo, na aparente rendição à política econômico-financeira anterior. A posterior recuperação nítida da popularidade presidencial, no começo de novembro, mostra, afinal, a permanência do núcleo de base do regime. O recrudescimento das novas acusações já vai ao inverossímil e, sobretudo, o País se cansa da crise, em contraste com o seu desempenho econômico e social.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 02/12/2005