Paixões violentas e narrativa impecável: este é O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell
Anos atrás, fui apresentado a um jovem empresário que vinha do Egito, mais precisamente da cidade de Alexandria. Perguntei se ele conhecia O Quarteto de Alexandria (tradução de Daniel Pellizzari; Ediouro; 955 páginas; 170 reais). "Acho que eles não tocam mais lá", foi a intrigada resposta. O equívoco só é desculpável pelo fato de que a memória cultural costuma ser irremediavelmente curta. Nos anos 60 e 70, qualquer pessoa razoavelmente bem informada saberia que O Quarteto de Alexandria designa um grupo de quatro romances magistrais do inglês Lawrence Durrell, que marcaram profundamente a ficção da época. Felizmente, há esperança de remediar a amnésia literária: o Quarteto, que só era conhecido no Brasil por meio de uma edição portuguesa, acaba de ganhar sua primeira e competente tradução brasileira.
O romancista, poeta, dramaturgo e ensaísta Lawrence George Durrell (1912-1990) foi um inglês nascido na Índia colonial, tal como George Orwell. Ao contrário do socialista Orwell, ele era indiferente à política. No seu tratamento de paixões extremadas, Durrell guarda afinidade com o americano Henry Miller (ainda que seja menos direto do que Miller em matéria de sexo). Durante a II Guerra Mundial, Durrell trabalhou para a embaixada britânica de Alexandria, no Egito. Ali encontrou Yvette Cohen, que seria sua mulher – e que foi o modelo para a personagem que dá título a Justine, primeiro romance da tetralogia, publicado em 1957. Seguiram-se Balthazar (1958), Mountolive (1959) e Clea (1960). O Quarteto conjuga numerosas influências, da filosofia budista – com a qual Durrell se familiarizou na Índia – às idéias de Freud e Einstein. Mas a obra é sobretudo, nas palavras do próprio autor, uma "investigação do amor moderno", expressão que abrange uma vasta gama de situações: homossexualismo, bissexualismo, estupro, incesto. Não por acaso, o título do primeiro volume, Justine, alude à obra do Marquês de Sade.
A ação transcorre durante a II Guerra Mundial e nos anos que a precedem. Alexandria é mais que um cenário: a cosmopolita cidade funciona quase como personagem, um lugar de beleza, mistério – e também de miséria. Do ponto de vista estilístico, a grande inovação de Durrell é o jogo com o foco narrativo. Os três primeiros livros narram basicamente a mesma história, remontada e revista a partir de diferentes pontos de vista. No primeiro livro, o protagonista e narrador é Darley, jovem candidato a escritor que tem um duplo caso: com a bela e fogosa Justine, uma judia casada com o rico negociante copta Nessim, e com Melissa, dançarina de cabaré. A ligação entre Justine e seu amante é um jogo narcísico, uma paixão perigosa que só pode acabar em desastre. Nos dois livros seguintes, a história é iluminada com a perspectiva de outros personagens – o médico e cabalista Balthazar e David Mountolive, o influente embaixador britânico no Egito. Clea funciona como uma espécie de síntese, na qual os aspectos obscuros dos romances anteriores são esclarecidos quando Darley retorna a Alexandria depois de anos isolado em uma ilha. Os detratores acusavam essa elaborada seqüência ficcional de pedantismo, de obscuridade e até de "alienação" política. Mas o fato é que, com uma exímia técnica narrativa, Lawrence Durrell retratou as paixões mais violentas de uma forma que ainda hoje conserva sua provocante originalidade. Seus leitores poderão constatar que o Quarteto continua tocando em Alexandria.
CONVERSA DE HOMEM
"Ruas que escapam das docas com suas casas arruinadas e decrépitas, grudadas umas às outras, soçobrando. Sacadas com persianas fechadas, cheias de ratos. Cheiro de berberes empapados de suor. (...) Quisera eu ser capaz de mimetizar a autoconfiança resoluta com que Justine abria caminho por essas ruas na direção do café onde eu estava à sua espera: El Bab. Nossas conversas já estavam impregnadas de subentendidos que considerávamos o bom presságio de uma simples amizade. Justine falava como um homem, e eu falava com ela como a um homem." Trecho de Justine
Revista Veja (Brasil) 20/12/2006