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A Literatura, as astúcias da razão e as certezas do desatino

 

Não tem acaso e coincidências nos processos inconscientes, querida, não vem com essa, fui logo respondendo à Madame K. Ela lia Tropical sol da liberdade, da Ana Maria Machado. O livro tronava na mesa de fórmica engordurada do bandejão da universidade. Mas o encontro era para relembrar e lamentar a morte de Philip Roth, há exatos cinco anos. Falei do romance O complexo de Portnoy, do Roth, das obsessões sexuais no livro, da mãe judia possessiva trazendo fantasmas e fantasias à noite ao lado das superfícies talássicas moventes. Madame K. estava produzida, saia curta preta combinando com meias também pretas, blusa vermelha apertada. Flamengo ou Exu, deixo você escolher, respondeu ela ao meu olhar, sorrindo, maliciosa. Logo esclareceu estar na sua fase LGBT.

Eu fora ao Instituto de Biologia para encontrá-la e também visitar o seu laboratório de tarântulas, objeto de sua pesquisa desde a tese de Doutorado em Harvard. Freud recebeu André Breton, o papa do surrealismo, e Salvador Dali, esse último por interveniência do amigo comum Stefan Sweig, dá para ver a importância da literatura e da arte na psicanálise, né, parceiro? comentou ela, peremptória.

Ela insistia no acaso e nas coincidências via literatura. Reclamou do machismo reinante na sociedade, dos homens que querem saber tudo mas tremem por uma saia. Madame K. fez uma paradinha e acrescentou àquela sua frase: E tremem por um rapaz bonito, só não assumem.

Falei-lhe da referência que fiz, havia pouco, ao livro sobre Stefan Sweig escrito por Alberto Dines e o de autoria de Deonísio da Silva . Quantoaos encontros com Freud, expliquei-lhe que meu amigo lacaniano Pierre Daviot, justamente, relembrara dessa passagem outro dia. E todo mundo sabe, resmunguei. Evoquei o livro La tâche, lido em francês, do Roth, do professor grego e o seu caso clandestino com a faxineira da Universidade, da sensação de culpa judaico-cristã percorrendo todo o romance. Ela me interrompeu sem parar, disse detestar o livro. Alguma coisa a incomoda no particular, só pode ser. Os poetas pressentiram há muito tempo o que a psicanálise vai " descobrir" mais tarde, sussurrou uma Madame K. didática, brandindo o livro da Ana Maria Machado como uma arma.Prosa ou verso, literatura é arte, ainda acrescentou. Li A audácia dessa mulher, retruquei, para não ficar por baixo, mas ela nem ouviu.

Ela tocou na questão do machismo de novo. Acha que nos meus escritos o protagonismo é sempre dos homens. Não nos romances, ela sublinhou, nesses A caminho do Fundão, por exemplo. Falta mulher decidindo, meu querido amigo, respeita o nosso lugar de fala. Voltei ainda ao Roth e o seu O fantasma sai de cena, o caos do desejo ( li esse “ o caos do desejo” numa crítica), o idoso operado da próstata se apaixonando por uma jovem de trinta anos, a questão do fim da vida arrasando o leitor.

Madame K. sempre me critica, mas aceito, somos amigos há trinta anos. Li nos anos 70 o romance Angústia para o jantar, do português Sttau Monteiro. O livro trata de um encontro anual entre dois amigos que se reúnem, há décadas, uma vez por ano, para jantar. E há décadas não têm assunto para falar. Não que eu não tenha nada para conversar com Madame K., mas há décadas a gente constrói frases passando ao lado da cabeça de cada um. O nosso encontro, aliás, acabou de repente. Ela marcara de sair da Universidade com uma jovem professora recém concursada. E lá se foi sobraçando o Tropical sol da liberdade( espero que aprenda sobre o que seja a vida com a Lena, do livro). Nem consegui ver as tarântulas do seu laboratório. Me dispensou como um pacote de pipoca vazio jogado no chão.

Redes Sociais, 01/08/2023