Com este livro chega Reynaldo Valinho Alvarez à primeira linha da poesia brasileira de hoje. Há muito que seus poemas vinham prenunciando essa posição que agora é sua. Mostra ele, em "Lavradio", sua fé e seu espanto diante da beleza das coisas e, por outro lado, perante a força dos acontecimentos que revelem a propensão da natureza humana para o lado trágico de cada avanço.
Nada disto bastaria para criar uma grande poesia se não fosse a certeza do poeta de que a rotina, a angústia, o desespero, o tédio, podem ser vencidos pelo uso da palavra certa capaz de exorcizar os males que nos cercam. Para isto, lavra a palavra: lavra-a de um modo novo, no exercício de um domínio completo e multilavrado, pegando nas sílabas e jogando-as contra um aparente nada, mas no entrechoque dos sons consegue dar a impressão, visual e auditiva, de tudo o que uma palavra possa conter em si e nos sons de que é feita.
A predominância da vogal "a", que o poeta prestigia, dá uma estranha dignidade a cada verso, a cada torneio do ritmo, nos cantos sobre os quais repousa seu mundo verbal. Ao longo de suas palavras iniciais - "Quem lavra /lavra o dia /o dia da palavra/ que se lavra/ a pau e pedra/ em meio às alvas/ sobre as pedralvas/ das que há em valvas/ de calmas rochas calmas" - consegue o poeta prescindir de vírgulas ou qualquer outro sinal divisionário que só passa a usar nos sonetos e trechos mais largos do livro.
A palavra "lavra" é colocada em várias funções: "a noite lavra o sono", "a noite lavra o dia", "a noite lavra/ com sua pá de sonho/ até que o sono/ acorde na palavra". O que se nota, nos poemas novos de Reynaldo Valinho Alvarez, é um inconformismo com tudo que está sendo feito em matéria de poesia: ele quer outra coisa, ele quer mais. País tropical, de vogais que se aclaram, somos cheios de "a" e de claridades que se abrem e se expandem.
Sua feitura poética atinge, assim, uma extrema pessoalidade, em versos limpos e límpidos, sem perdas de palavras nem exageros vocabulares. A palavra está, nele, conquistada e pacificada, mas vê-se que o poeta deseja ir além, numa luta permanente para alcançar uma pureza de expressão ainda mais significante, luta parecida com a de Jacó e o anjo.
Há, em Reynaldo Valinho Alvarez, uma busca, uma "recherche", como a de Proust, numa linha que vem do passado e só por um momento se detém diante do homem que vive de palavras. Lavrando a palavra, sabe o poeta que entre uma sílaba e outra o que existe é o silêncio e que ele também faz parte do poema e de qualquer outra feitura das gentes, de palavras ou não.
Um dos últimos poemas do livro é "o silêncio", com estes versos: "Estás no trem do tempo. Quanto falta/ para que se complete esta jornada?/ Estás no barco entre almas. Serão elas/ aquelas que teu povo acha benditas?". Na verdade o silêncio também está incluído no verso, faz parte de seu todo pois no silêncio Reynaldo Valinho Alvarez insere uma suspensão do hausto que modula a cadência das palavras.
Mas o livro inteiro é um poema só, uma ininterrupta narração do homem encurralado, um homem que se apresenta como doente de si mesmo: "ele desce ao seu pélago mais fundo./ A rua, sob o sol, grita-lhe o nome/ e o ruído infernal o alcança e o come."
Contudo a solidão se adensa e nem o sentimento da entrega consegue superar o abandono de si mesmo pois "Todo impulso de amar, ao libertar-se,/ vai além de si mesmo e da catarse/ de quem se fecha no âmago do nó/ em que se pense ou sente, sempre só." A poesia de Reynaldo Valinho Alvarez é canto, cantiga, cântico e ele depura cada palavra, lavra cada palavra, na convicção de que é nelas que se concentra o ser poético do todo.
No fundo, o que faz é uma firme tentativa de renovar as palavras: pega-as, solta-as, de repente pega-as de novo, num embate contra o tempo, a massa de tempo que envolve as palavras e torna-as mais significantes. Sabemos que a "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima, abriu muitas veredas, novas e velhas, desde a marcação greco-latino-galaico-portuguesa até a batida firme dos tambores africanos e o gosto abertamente vocálico do indígena brasileiro.
Esta me parece a mais legítima linhagem da poesia brasileira e nela estão inseridos os poetas mais representativos do momento, a partir da clareza, a "claritas" latina, dos versos de Valinho Alvarez.
Ao longo de tempos diferentes, de poesias aparentemente diversas e inconfundíveis, Reynaldo Valinho Alvarez vem de uma linhagem que nos deu os melhores poetas desta parte do mundo. Pois vem simplesmente de um grupo de fazedores de verso em que estariam Gonçalves Dias, Cruz e Sousa, Vicente de Carvalho, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Jorge de Lima e Lêdo Ivo.
Não deixeis que uma aparente divergência entre esses poetas vos perturbe. Há em todos um sentido de busca e um resultado: o de um terso ritmo vocabular servindo a uma idéia. Neles, de Gonçalves Dias a Reynaldo Valinho Alvarez, estão os elementos mais puros da canção juntamente com a beleza do som pela beleza do som, numa realização de cuidadoso lavor.
É como se Valinho Alvarez fizesse poesia como quem estivesse cumprindo um rito sacerdotal, com palavras rituais e toda uma liturgia que desse a cada palavra sua um significado mais amplo.
"Lavradio", de Reynaldo Valinho Alvarez, é um lançamento da editora Myrrha. Organização, produção dos textos e revisão de Maria José de Sant'Anna Alvarez. Capa e projeto gráfico de Hortensia Maria Pecegueiro do Amaral. Produção editorial de Luís Pimentel. Textos elucidativos de Alexei Bueno, Délia Cambeiro, Ivan Junqueira e Antonio Carlos Secchin.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 30/11/2004