Procurado por Sandra Teixeira, logo no começo da feitura deste livro, para ele escrevi prefácio em que falo da palavra.
No começo, era a palavra. No começo, é a palavra. O livro sagrado em que se acha esta declaração básica faz parte de uma tradição milenar. Todas as religiões têm seu livro próprio, em que se apresentam os princípios que devem ser seguidos pelos que pertencem àquela seita determinada. É a Palavra como guia, é a Palavra que abençoa, é a Palavra que ilumina o entendimento.
Daí a convicção do homem comum de que só o que tem nome existe. O que não tem nome, não existe. A idéia é de que os primeiros homens saíram por aí dando nome às coisas. Diziam: você é o rio, você é a flor, você é meu amigo José, você é minha namorada Maria. Essa base verbal levou o homem a raciocinar, a tirar conclusões, a encontrar o que procurava.
Antes e depois da palavra, o homem também raciocinava. Criava pensamentos por meio de imagens, imagens internas, imagens sem palavras, súbitas iluminações que não precisavam de acréscimos verbais.
Ingressou a psicanálise nesse terreno macio em que se formam os impulsos e nascem idéias que não se sabe de onde vêm. Visões interiores, místicas, visões normais, visões do futuro, pedaços de imagens formadas nos sonhos. E existem também os pensamentos selvagens, de que falam Leo Frobenius e Lévi-Strauss. O homem primitivo pensa selvagemente, no sentido de que, para ele, não existe objeto direto. Ele não come a fruta. Ele é a fruta que está comendo. Ele é a dança que está dançando. Ele é a paisagem que está vendo.
Analisar a "construção do pensamento", nesses casos, implica uma nova posição perante o assunto. Claro está que, em todo este processo, a palavra continua subentendida. Na troca do som (ouvido ou apreendido), fixa-se às vezes a imagem que prevalece e cai na memória. Pois eis o outro elemento que precisamos levar em consideração: a memória. Funciona a memória tanto com o som como com a imagem, geralmente até com mais nitidez quando se trata da imagem.
A memória pode, inclusive, inserir elementos novos num conjunto de recordação, já que ela funciona também com o gosto, com a música e até com a luz. A famosa página de Proust, quando o gosto do bolo chamado madeleine transportou o personagem ao passado em nítidas recuperações de momento antigo, leva-nos à certeza de que prescindimos da palavra para reviver um tempo longe de nós. Lembramo-la por meio do gosto e, mais comumente, da música, no caso em que determinada melodia estimula a memória a ir em busca de si mesma no passado.
O que Leo Frobenius chamou de pensamento selvagem pode também estar contido numa súbita inspiração de poeta ou no êxtase de uma santa. Os fenômenos que nem sempre entendemos podem abrir-nos um panorama novo no entendimento do mistério que, apesar de todos os estudos, ainda somos para nós mesmos e para os outros.
O livro "Linguagem e construção do pensamento", de José Renato Avzaradel, é um documento científico instigante. Investiga, com percuciência, o que de mais pessoal temos bem no fundo de cada um de nós, na própria usina em que nos dedicamos a construir as paredes mesmas do ser que pensa e que sente.
Na busca de análises da linguagem e da verdadeira construção do ato de pensar, excelente é a contribuição dos participantes do livro organizado por Avzaradel.
Praticamente todos os ângulos da filosofia da linguagem são estudados ao longo do livro, seja através de reflexões sobre as formas de consciência no processo analítica, seja pelo estudo minucioso, seja pelo processo de constituição do significado na vida mental. Participam desse trabalho de explicar as diversas concepções do assunto os especialistas Danilo Marcondes, Ney Marinho, Isaías Mensohn, Arnaldo Chuster, Paulo Maucho, Elias M. da Silva Barros, Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho, J. A Bockmann de Faria, José Francisco da Gama e Silva e Eliane Yunes.
Edição Casa do Psicólogo, capa de Nathalie Braga sobre escultura de Michelangelo, orelha de Henrique Honigsztejn.
Tribuna da Imprensa (RJ) 5/12/2006