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Lições e espantos de 2008

 

O RECADO do êxito de Barack Obama foi sobretudo o da obrigatória convivência da democracia com os emergentes sistemas de poder do século 21. Veio à frente desse sucesso uma América profunda que nos trouxe de volta à cidadania arraigada em Estados drasticamente conservadores, como Iowa ou Virgínia do Sul, rompendo todas as previsões de jogo, que afinal fazem das eleições sempre meras alternativas de um mesmo establishment. O ganho do senador do Illinois livra-nos por outro lado do horror da permanência dos republicanos, o que só cristalizaria de vez o pior fundamentalismo ocidental. Na declaração de George W. Bush, esses valores autorizariam até a mentira política no enfrentamento previsível de uma guerra de religiões.


Se a queda do atual situacionismo afasta a hegemonia política tradicional, a crise financeira deste fim de ano elimina de fato, após as dramáticas reuniões de outubro último, o comando do globo pelo G8, trocado pelo G20 e dando a partida a uma multipolaridade universal. O desponte dos Brics elimina de vez a noção de centro e periferia, aposentando a visão de um mundo partido em que sobrevivia o fantasma da Guerra Fria.


Não há que ver a catástrofe financeira, porém, como um tsunami na sua chegada às plagas de países continentais, de mercado interno gigantesco e mobilidade social desatada, a modificar as dominantes da prosperidade moderna ainda assentada no balanço das trocas externas e de uma complementaridade de mercados.


De toda forma, não há de pensar numa retomada da crise de 30 nem de um retorno do modelo liberal, de seu dinamismo selvagem e irresponsável pela extraordinária prosperidade da última trintena -esta que acaba agora nos desequilíbrios da ganância confessa, da falta de previsibilidade dos retornos do mercado imobiliário e de seus "subprimes" ou da aposta na obsolescência dos parques clássicos da produção automobilística norte-americana.


As terapias financeira européias, a partir da iniciativa de Gordon Brown, na Inglaterra, reinstalam as cautelas dos controles de investimento público que representam uma vitória póstuma do ideário de Keynes sobre o de Freedman na base da prosperidade, como entrevista por Nixon, Reagan e Bush.

O terrorismo internacional em 2008, no recado de Zawahiri -o guru do Al Qaeda- a Obama, não deixa dúvidas sobre a manutenção do impasse, na medida em que Bin Laden baixará as armas diante do novo homem da Casa Branca, presumidamente nascido de pai islâmico, se voltar à fé de origem e converterem-se, a seu exemplo, os Estados Unidos à crença do profeta. Não se irá à jihad no entretempo, mas os destruidores do World Trade Center são os mártires precursores de uma nova ordem internacional, que promete conviver com a barbárie ocidental.


Nessa liderança transversa, os Brics eliminam as velhas bússolas Norte-Sul e juntam de vez o crescimento econômico e o reforço democrático em que o Brasil apresenta posição ímpar. Obama acordará tarde para a América Latina, numa das poucas falhas que hoje abalam as suas prioridades internacionais. Mas o salto histórico que representou a sua vitória, tornando anacrônicos populismos como o de Chávez, reverbera no continente dessa consolidação democrática que lidera o Brasil de Lula, repudiando um terceiro mandato e conservando um paradigma para ficar. Torna a pretensão à Presidência perpétua de Chávez grotesca, senão patética.


A democracia sai, de fato, do anônimo de seus rituais para a virada histórica de página como sustento dos direitos humanos. No ano em que se celebram os 60 anos de sua declaração, mais do que nunca, são os países da afirmação cidadã, como o nosso, que podem oferecer a melhor garantia ao desenvolvimento, já, e de fato, sustentável.


Folha de S. Paulo (SP) 30/12/2008

Folha de S. Paulo (SP), 30/12/2008