A ciência jurídica brasileira está de luto, há vários dias, com a morte de Raymundo Faoro, ocorrida cinco meses depois do falecimento de seu grande amigo Evandro Lins e Silva.
Por um desses singulares desígnios do destino, eles dois estão hoje sepultados lado a lado, no mausoléu acadêmico do Cemitério de São João Baptista, e unidos para sempre no reino da Glória, da Eternidade e do Universo onírico das pessoas dignas, honradas, incorruptíveis e exemplares, como eles dois, dos quais já estamos sentindo - e sentiremos sempre - saudades imensas.
Ao lado de sua cabeça, dentro do caixão - e para cumprir o seu último desejo - foram enterrados também os restos mortais de Pompéia, sua inesquecível mulher, a grande paixão e a razão de ser de toda a sua vida.
Nem muito moço nem velho ainda, Raymundo Faoro chegou à Academia Brasileira de Letras após ter escrito dois livros simplesmente emblemáticos. Num deles - Os Donos do Poder , de dois volumes e 750 páginas - extravasou enorme riqueza de conceitos sociológicos, dentro de um vernáculo puro e de um linguajar erudito, desfilando nele os gurus clássicos da sabedoria política. Em Machado, a pirâmide e o trapézio - outra obra sua -, Faoro realizou a façanha de adaptar as concepções filosóficas do primeiro livro à ficção das tramas e dos atores machadianos.
Já tinha, então, marcado também a sua presença no cenário nacional, sobretudo durante dois anos, de 1977 a 1979, quando se agigantou, com heroísmo e coragem, na presidência da Ordem dos Advogados do Brasil.
Essa presença cresceu muito no seu histórico encontro com o general Geisel, travando-se entre os dois um edificante diálogo, que o próprio Faoro, certa noite, quando ainda não era candidato à ABL, me reconstituiu, palavra por palavra:
- Afinal de contas, Dr. Faoro, o que o senhor quer do meu governo?
- Quero muito pouco, senhor presidente: apenas a restauração do habeas-corpus, a extinção dos atos institucionais e o fim das torturas nos desvãos do DOI-Codi, quanto mais não seja para que V. Excia. não entre na História como um ditador sanguinário, mas sim como o presidente da sua abertura, ''lenta, gradual e segura''.
Faoro consagrou-se a seguir nas sucessivas intermediações com o senador Petrônio Portella, para a restauração do Estado democrático.
Antes de adoecer e, naquela mesma ocasião, ele me revelou que, na manhã do dia 12 de outubro de 1978, estava hospedado num hotel no Recife, quando a telefonista lhe anunciou uma chamada de Brasília. Era o senador Petrônio, que lhe dizia o seguinte:
- O tráfego aí no Recife não deve estar bom, mas aqui em Brasília pode melhorar durante o dia.
Só a muito custo, Faoro percebeu que aquele aviso era uma mensagem em código, com a qual o senador piauiense previa o que realmente iria acontecer naquela tarde: a demissão, pelo general-presidente Ernesto Geisel, do general-ministro Sílvio Frota e da sua ''linha dura'' no Ministério do Exército, que se erigiam como obstáculos quase intransponíveis ao caminho da abertura.
Faoro foi assim um admirável lutador pela restauração democrática, que, já doente, recebeu em casa a visita do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo de lhe agradecer pessoalmente o apoio recebido durante a campanha eleitoral.
Infelizmente, suas condições de saúde não mais lhe permitiram estar em Brasília no dia da posse do seu candidato.
Instado por Evandro Lins e Silva, Josué Montello, Celso Furtado, Afonso Arinos e Alberto Venancio, elegeu-se para a ABL, no dia 23 de novembro do ano 2000. Três vezes e por quase dois anos, recomendações médicas adiaram a sua posse. Terminou se empossando, solenemente, já com a saúde abalada, dia 17 de setembro de 2002.
Esse gaúcho da cidade de Vacaria, alto e míope, simples, afável e modesto, que se proclamava ''um carioca, por decurso de prazo'', foi um jurista que deu prosseguimento na ABL a uma linhagem de ilustres jurisconsultos, de Rui Barbosa a Evandro Lins e Silva.
Nesta comovida evocação de Faoro e da lição de sua vida, devemos reconhecer que, após sete meses de muito sofrimento e de várias internações em UTI - escravizado a um respiradouro artificial - Raymundo Faoro morreu em conseqüência de um enfisema pulmonar crônico, com o qual conviveu estoicamente.
Ao longo destes últimos sete meses, seu estado clínico agravou-se sempre, com intermitências de ligeiras melhoras, até chegar ao desenlace. Como se fosse um discípulo de Zenon, na doutrina do Pórtico, teve espírito firme e panteísta para enfrentar uma sofrida enfermidade. Seu panteísmo identificava o mundo como uma penosa realidade subordinada ao processo de Deus, segundo a ética latinista de Baruch Spinoza.
De Faoro e dos seus 78 anos de vida, completados no último dia 27 de abril e vividos com dignidade, compostura e decência, restou-nos para sempre a imagem de um homem de bem, de um advogado correto, de um sociólogo competente, de um historiógrafo dedicado, um cientista, um jornalista e um pensador leal aos seus ideais de socialismo democrático.
Ele foi um paladino da Ética e uma das nossas poucas referências unânimes, em toda a História brasileira.
Foi também um homem que marcou toda a sua vida por uma enorme coragem e uma grande coerência, fiel aos seus princípios políticos e ideológicos, pelos quais pagou um altíssimo tributo.
Deixou um magnífico exemplo de honestidade - uma mercadoria que, infelizmente, anda cada vez mais escassa na paisagem brasileira, marcada por tantas CPIs e por tantas corrupções.
Possuía uma inesgotável disposição de trabalhar, uma inexcedível vontade de escrever e um juvenil amor pela vida, que lhe transcorreu bravamente - inclusive no enfrentamento do regime militar -, como se fosse um novo Dom Quixote, um cavaleiro andante, cervantino e fidalgo, romântico, nobre e sonhador, nas suas lutas contra os moinhos do Poder.
Dir-se-ia até um personagem ulissiano de Joyce, que tentava transformar em realidades concretas as suas utopias socialistas. Com essas utopias, nasceu. Com elas, viveu. Por elas, lutou. E, com elas, morreu.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 28/05/2003