As mulheres brasileiras entraram numa espécie de máquina do tempo que só anda para trás. Proposta de emenda constitucional proibindo todos os tipos de aborto, mesmo os hoje amparados pelo Código Penal, inserida sorrateiramente em projeto de lei favorável às mulheres, foi aprovada por uma Comissão Especial da Câmara de Deputados. Iniciativa similar tramita no Senado.
Há mais de 30 anos vimos escrevendo sobre o problema da interrupção voluntária da gravidez. Denunciamos à exaustão a clandestinidade imposta pela criminalização, tragédia que leva aos hospitais milhares de mulheres, com sequelas de mais de um milhão de abortos feitos a cada ano. Apesar disso, elas continuam, na segunda década do século XXI, sujeitas a um Código Penal de 1940 que só autoriza o aborto nos casos de estupro ou de risco de vida para a mãe. Depois de dura luta nos tribunais foi assegurado, recentemente, o direito de interromper a gravidez de fetos anencefálicos.
O STF, em sintonia com a sociedade, está em boa hora discutindo o direito das mulheres de interromper uma gravidez indesejada até o terceiro mês de gestação.
No Congresso Nacional, atropelando o Direito e a Ciência, bancadas de obediência religiosa sempre foram as responsáveis por esse estado de coisas, desumano, que impõe a todas as mulheres um diktat que afeta diretamente as mais pobres, as que sofrem e morrem porque não têm como abortar senão em condições sórdidas.
Semanas atrás, 18 deputados, contrariando o voto solitário da única mulher membro da comissão especial, resolveram ir ainda mais longe, proibindo a interrupção voluntária da gravidez mesmo em caso de risco de vida para mãe. A vida de uma mulher para esses senhores não vale nada, o corpo feminino é um simples instrumento de reprodução, desprovido de vontade ou direitos. Senão, como passaria pela cabeça de alguém, em nome de uma suposta defesa da vida, propor essa lei assassina?
Uma segunda violência que resulta desta proposta é o imperativo legal de levar a termo uma gravidez resultante de estupro. A lei condena mulheres de todas as idades, inclusive adolescentes, vítimas de uma violência sexual que, em si, já é uma forma de morte, a carregar no corpo e na alma a sequela dessa violência.
Como mulher, afirmo, não teria havido força humana que me obrigasse a ter o filho de um estuprador. Só uma espantosa insensibilidade moral pode pretender impor tamanha violação da dignidade das mulheres. Ter ainda que argumentar contra essa aberração é humilhante. Por quem se tomam esses senhores que ousam ditar as escolhas mais íntimas das mulheres? Que se arrogam o direito de editar sentenças de morte ou de opróbrio? Em que século, em que país pensam que vivem?
O clima que se criou no Congresso Nacional tem um cheiro forte do fundamentalismo que lapida as “infiéis” e castiga as “impuras”. Suspeito que o que moveu os parlamentares a aprovar essa PEC não tenha sido a suposta defesa da vida, como alegam, e sim um inconfesso ou inconsciente ódio às mulheres.
No Brasil em que as mulheres cada vez mais sustentam suas famílias, elas sabem se defender e vão se defender. Ninguém as obrigará contra a sua vontade a morrer ou a carregar para sempre a sequela da mais brutal agressão sexual. Nem a sofrer a tortura de gestar por nove meses um feto inviável. Por que, então, essa insistência sádica em torturá-las, expondo-as ao desamparo e ao desespero?
O presidente da Câmara prometeu não colocar a proposta em votação no plenário a menos que dela se retire a expressão “desde a concepção”, que proibiria o aborto em quaisquer circunstâncias. Ver para crer. No balcão de negócios em que o Congresso Nacional se transformou, se a emenda for levada à votação, tudo pode acontecer.
Minhas esperanças voltam-se para o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República e dos direitos do cidadão. O ministro Luís Roberto Barroso, em conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras, afirmou que nenhuma mulher deve ser obrigada a ter um filho do Código Penal, frase digna de sua formação humanista.
É inconcebível que o STF venha a permitir que se implante aqui, por obra e graça de um Congresso que perdeu a confiança e o respeito da população, uma lei infame que nos faz retroceder aos anos 30, viola os direitos das mulheres e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na Conferencia Mundial sobre as Mulheres em Pequim. O Supremo Tribunal Federal, em defesa da liberdade e dignidade das mulheres, não haverá de convalidar tamanha abjeção.