Considerar que a Lei da Ficha Limpa é um obstáculo à democracia representativa, pois não permite que um líder popular como Lula seja julgado pelo eleitor nas urnas, é misturar alhos com bugalhos, como se uma eleição vitoriosa isentasse o candidato de seus crimes.
O que deveria ser julgado nas urnas é a vida pública do candidato. Mas se ela foi usada para cometer crimes contra o patrimônio público, em benefício próprio ou de terceiros, não há nenhuma justiça em permitir que esse candidato, que se aproveita da popularidade para enganar seus eleitores e burlar a lei, continue disputando eleições como maneira de não ser julgado. Não importa quanto suposto bem-estar esse líder espalhou em sua passagem pelo governo.
Aceitar a tese de que, por ser popular e até mesmo líder das pesquisas de opinião neste momento, Lula não deveria ser impedido de concorrer, pois isso tiraria a legitimidade da escolha final, é submeter as leis à política partidária, o que desvirtua a democracia. A lei é ou não para todos?
A Lei da Ficha Limpa traça apenas critérios para que qualquer cidadão possa se candidatar, e os que são condenados em segunda instância, portanto por um colegiado, não têm mais esse direito. Assim como menor de 35 anos não pode ser candidato à presidência da República, por exemplo.
Ao tratar dos direitos políticos, a Constituição, em seu Capítulo IV, estabelece condições de elegibilidade e elenca algumas hipóteses de inelegibilidade, além de admitir que novas sejam definidas em lei complementar, com o intuito de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato e a normalidade e legitimidade das eleições.
Uma Lei Complementar de iniciativa popular foi promulgada em 2010 para “incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”, a chamada “Lei da Ficha Limpa”. O fato de ser uma iniciativa popular dá bem a dimensão da decisão, que foi ao encontro do anseio da sociedade que já àquela altura clamava por barreiras éticas e morais nas condições de elegibilidade, além das que já estavam incluídas na Constituição, como a idade mínima, domicílio eleitoral, inscrição partidária, e por aí vai.
Para o Supremo Tribunal Federal (STF), a Lei da Ficha Limpa é “significativo avanço democrático com o escopo de viabilizar o banimento da vida pública de pessoas que não atenderiam às exigências de moralidade e probidade, considerada a vida pregressa”. Evidentemente as leis não impedem que crimes continuem sendo cometidos, e por isso chega a ser ingênuo apontar o fato de a corrupção revelada agora pela Operação Lava Jato ter continuado a acontecer, mesmo depois de sua promulgação, como exemplo de que a Lei da Ficha Limpa não teve efeito prático.
E se uma decisão da Justiça, condenando o ex-presidente Lula, for considerada suspeita de politização, estaremos aceitando que o Estado democrático de direito não funciona entre nós. O que não passa de uma tentativa canhestra de defesa contra as evidências passaria a ser uma verdade absoluta.
E por que a Lei da Ficha Limpa, que foi sancionada pelo próprio Lula na presidência, nunca foi contestada antes? O ex-presidente tem todo o direito de explorar todas as brechas legais para tentar manter-se na corrida presidencial de 2018, e se, por qualquer motivo dentro da legalidade, conseguir chegar até o dia da eleição em condições de ser votado, o que é muito difícil, e ganhar, terá o direito de assumir a presidência da República.
Uma República desmoralizada é bem verdade, que terá o presidente que merece. Assim como se Bolsonaro for eleito. Uma patética continuidade do ambiente político do governo Temer, que se salvou do impeachment com manobras fisiológicas dignas de uma republiqueta de bananas, natureza que será reafirmada caso um caudilho populista condenado em segunda instância seja alçado novamente ao poder central graças a chicanas jurídicas.