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Lavando as mãos

 

Não se deve brincar com coisas sérias - é um conselho que vem rolando desde o início dos séculos. Motivo mais do que suficiente para não levá-lo a sério, por mais séria que a coisa seja. Essa mania de abandonar crianças, muitas vezes indo além do simples abandono, mas ao crime de morte, está provocando indignação e, ao mesmo tempo, uma louvável solidariedade, com vários casais habilitando-se a ficar com os enjeitados.


Já lembrei, em crônica da semana passada, que Jean-Jacques Rosseau foi jogado na roda dos expostos, o que não o impediu de escrever "O Contrato Social" e de lançar a tese do "bom selvagem", que, alternadamente, é confirmada e desmentida, conforme o rodar da carruagem.


Diogo Feijó foi outro enjeitado e chegou a regente do Império. Na ficção, o caso mais notável é o de "Tom Jones", escrito por um dos pais da prosa inglesa, Henry Fielding - na lista dos livros mais deliciosos da literatura universal.


Acontece que, de certa forma, sou também um enjeitado, inclusive da sociedade como um todo, que nada quer de mim - nem eu dela. Fui roubado do meu berço aos dois meses de idade por duas ciganas que deixaram em meu lugar um guri de aproximados dois meses e destinado às piores coisas. Quando deram pela troca, era tarde, embora meus infortúnios tenham vindo cedo, mais cedo do que eu próprio esperava,


Com esse tema delirante, já fiz várias crônicas e, se me deixarem, pretendo fazer outras tantas. Fiz também um romance, publicado pela Objetiva em 2002, e até hoje recebo e-mails perguntando se é verdade que houve a troca de bebês.


"O que é a verdade?", foi a pergunta que Pilatos fez a Cristo pouco antes de mandar crucificá-lo e lavar as mãos - não as de Cristo, mas as próprias.


Se Cristo não soube ou não quis responder a Pilatos, não serei eu que vou saber o que é a verdade. De certo forma, sou crucificado todos os dias, mas sempre lavo as mãos: não tenho nada com isso.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 12/2/2006