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A lâmpada de Érico

 

Convidado para participar em Porto Alegre de um debate sobre a obra de Érico Veríssimo, cujo centenário de nascimento comemora-se neste ano, andei relendo alguns de seus livros que considero mais importantes. E deparei-me com uma cena e um comentário que muito me impressionaram em "Solo de Clarineta", que são suas memórias.


Filho de um dono de farmácia em Cruz Alta (RS), farmácia que, nas cidades do interior, funciona como único pronto-socorro da coletividade. Ali chegou um homem gravemente ferido, com o abdome aberto, por onde saíam os intestinos, muito sangue e pus. Era noite, o homem estava morrendo. Chamaram Érico, mal saído da infância, para segurar uma lâmpada que iluminasse o ferimento que deveria ser operado por um médico de emergência.


O menino teve engulhos, ficou enojado, mas agüentou firme, segurando a lâmpada, ajudando a salvar uma vida. Em sua autobiografia, ele recorda aquela noite e comenta:


"Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror".


Creio que não há, na literatura universal, uma imagem tão precisa sobre o ofício do escritor, principalmente do romancista. Leitores e críticos geralmente reclamam das passagens mais escabrosas, aparentemente de gosto duvidoso, de um romance, texto teatral, novela ou conto. Acusação feita à escola realista, na qual se destacaram Zola e Eça de Queiroz. No teatro, Nelson Rodrigues e até mesmo Shakespeare em alguns momentos, como na cena do porteiro de "Macbeth".


Érico acertou na veia (perdoem a imagem que está na moda). Ele também ergueu sua lâmpada e iluminou parte da escuridão em que vivemos.




Folha de São Paulo (São Paulo) 12/06/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 12/06/2005