Era algo que enchia qualquer um de admiração e orgulho. Mas antes era preciso vencer o descrédito de quem não conhece essa realidade e duvida que seja possível. Comparável ao espanto de saber que temos eleição com urna eletrônica, e a certeza de que em poucas horas dá para se ter um resultado confiável. Num país do tamanho do Brasil! Com essas distâncias! Como é que pode?
Difícil responder. No caso específico a que me refiro, foi uma lenta construção coletiva, e já vinha se fazendo há quase duas décadas. Só assim toda escola pública brasileira, mesmo nos recantos mais remotos, passou a ter salas de leitura com livros de boa qualidade, criteriosamente selecionados de forma democrática e profissional, atualizados todo ano. Essa construção se impôs como vontade da população e como um compromisso assumido por sucessivos governos, de diferentes partidos, que entenderam a prioridade de garanti-la. É isso que está sendo interrompido agora e causando indignação em todos os que tomam conhecimento do mais recente malfeito da prometida Pátria Educadora, nem ao menos anunciado ao público com transparência.
O Programa Nacional Biblioteca da Escola, PNBE, foi criado em 1997, na gestão Paulo Renato, governo FH. No governo seguinte, quando um de seus subprogramas, o Literatura em Minha Casa, foi interrompido em 2004, houve uma grita geral, que obrigou à retomada do apoio às bibliotecas escolares, sob outra forma — e isso foi incorporado como um programa de Estado, não mais de governo, que durou até agora. Era o reconhecimento da importância de que todas as escolas do Brasil tenham a oportunidade de, ao menos, manter salas de leitura com um acervo de qualidade e atualizado. Passados 18 anos, pudemos nos orgulhar de que o acesso a obras literárias para a infância não é mais um problema no Brasil. Toda escola pública recebia todo ano bons livros de literatura. A questão passou a ser outra: como incluir na formação dos professores ferramentas que lhes permitam lidar com esses livros?
Rumores sobre a suspensão do programa já existiam há algum tempo. Agora se confirmam, registrados com detalhes pela jornalista Graça Ramos, em seu blog hospedado no site deste jornal. A decisão do MEC é justificada pelo entendimento de que livros de literatura não são prioridade. E serviu de sinal para liberar geral a corrida contra as salas de leitura. Logo o governo de São Paulo seguiu o exemplo, e também suspendeu seus programas na área, a comprovar que PT e PSDB podem concordar em alguma coisa neste país e se unir contra um inimigo comum: livros e crianças leitoras. A prefeitura de São Paulo se antecipara — lá os cortes vieram desde a gestão Kassab (PSD), mantidos pelo petista Haddad. Por enquanto, o Rio se mantém como honrosa exceção, não apenas atualizando bibliotecas, mas também apoiando o Salão FNLIJ, encerrado domingo, só de obras para a infância. No caso do PNBE, há o grande atraso, os muitos rumores, as explicações extraoficiais que evitam falar em cancelamento, apresentando-o como mudança. Talvez um pouco de transparência ajudasse. O país está de olho. Quer saber se nossas crianças continuarão a receber livros de literatura nas escolas. Simples assim.
Preferia não ter de falar numa coisa dessas. Estava me guardando para hoje me concentrar em duas louvações. A primeira, de pura alegria, celebrando a decisão unânime do STF sobre a inconstitucionalidade de se pretender autorização prévia para publicação de biografias. Dessa forma, o Supremo rejeita a censura, faz a nação confiar na Justiça e sentir que a liberdade de expressão está protegida.
A segunda louvação vem pintada de tristeza, pela morte do poeta e compositor Fernando Brandt. Além das qualidades de seu lirismo, reconhecido por todos, celebro quem talvez tenha sido o mais preparado e corajoso defensor dos direitos autorais entre os artistas brasileiros. Formado em Direito, tinha embasamento jurídico para liderar essa luta dura e jamais fugia dela. Mas seu perfil discreto lhe sugeria não se colocar sob os holofotes, e preferir ficar municiando os outros com dados e argumentos. Fomos parceiros em várias batalhas nessa área. A certeza de poder contar sempre com ele era uma tranquilidade. O último editorial que publicou na revista da União Brasileira de Compositores, que presidia, fica como legado e conselho: “O autor é o princípio de tudo o que se refere à cultura. Sem ele não haveria a beleza da música, da poesia, da arte. Oxigênio da vida humana, impulsiona, ao mesmo tempo, as engrenagens de um mercado infinito. Defender os direitos dos autores é uma tarefa que parece não ter fim. Os adversários do respeito aos criadores inventam, a todo momento, armadilhas e estratégias para nos desrespeitar. A UBC e todos os compositores, músicos e intérpretes que a sustentam estão atentos para que nossos direitos prevaleçam sobre os interesses comerciais escusos.”
A criação brasileira fica mais desamparada sem Fernando Brandt.