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"La Ronde"

 

Desconfio das coisas muito repetidas, dos slogans e gritos de guerra: "Todo o poder ao povo!". "Povo unido jamais será vencido!". "Tortura nunca mais!". "Um, dois, três, corruptos no xadrez!" (Este último ainda não entrou em circulação, mas não custa esperar).


Na sexta-feira passada, no 12º Foro em São Paulo, durante o encontro da esquerda latino-americana, o presidente Lula declarou que, "no Brasil, a democracia veio para ficar". Tudo bem. É uma frase - e um sentimento - recorrente. Aparece em discursos políticos ou não, em manifestos, programas partidários, colunas de jornais.


Não sei não. Passamos quase metade do século 20 em regimes de ditadura. A própria República, que se baseia unicamente na democracia, teve os seus começos com ditadores escrachados ou camuflados.


Digamos que são coisas do passado. A democracia veio para ficar, está consolidada, o povo brasileiro jamais aceitará um regime que não seja o democrático. Participo dessa convicção nacional, mas sou cético por natureza, aprendi com Sócrates a duvidar de tudo, das verdades mais estabelecidas. Além do ceticismo, já vivi o bastante para ver coisas assombrosas no plano individual e coletivo.


Aprendi, por exemplo, que, quanto mais se repete uma verdade, por mais inquestionável que seja, no fundo se duvida dela. A repetição faz parte da tentativa de nos convencermos de alguma coisa da qual secretamente duvidamos.


Deus é testemunha de que nada estou agourando de mau para nós, mas tremo nas bases quando ouço declarações enfáticas de nossos líderes, garantindo que, no Brasil, a democracia veio para ficar. Já veio outras vezes e não ficou. E só o fato de "vir" revela que alguma coisa não-democrática estava aqui instalada.


Max Ophuls, acho que nos anos 30, fez um belo filme intitulado "La Ronde". Era sobre a rotatividade do amor. Com pequenas adaptações, serve para tudo.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 07/07/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 07/07/2005