Cavacos do oficio me obrigavam, volta e meia, a comparecer sob vara nas Varas Criminais do foro local. Processos os mais variados, nos quais às vezes funcionava como réu, às vezes como testemunha de defesa ou de acusação, funções que procurava desempenhar civicamente, intimado ou convidado pelos meritíssimos.
Acontecia, inclusive, que num mesmo processo funcionava como testemunha arrolada pela defesa e pela acusação: um rapaz que se entupira de cocaína e matara, com um rabo-de-arraia, um oficial da Marinha, pai de cinco filhos, numa Sexta-Feira da Paixão.
Entrevistara o criminoso ainda na delegacia, encontrei-o no chão, em crise de dependência dolorosa, uma baba incolor escorrendo das narinas, a língua maior do que a boca.
Os guardas que o detinham não sabiam o que fazer. Descrevi o episódio numa reportagem, tanto o promotor como os advogados de defesa apelaram para o meu testemunho.
Moral da história: a droga, para mim (e declarei isso na dupla função de testemunha acusatória e defensora), pode ser tudo, menos questão de polícia ou de justiça. Mas deixa pra lá.
Dias depois, já na incômoda e habitual condição de réu, lá fui sentar meu cansado corpo naquele banco que o lugar-comum chama de banco dos réus, e é dos réus mesmo: duro, inglório, abaixo do nível da sala, para esmagar o criminoso moral e topograficamente.
Um processo reles, desses que a profissão me arrastava comumente. Na audiência, era ouvido o testemunho arrolado pelo meu advogado, Evaristo de Moraes Filho. O juiz era um simpático velhinho, desses que a gente gostaria de ter como tio-avô ou padrinho, homem bom, simples, calejado no oficio de julgar humanos delitos, e que com a sabedoria da idade e da profissão, antes mesmo de terminar o processo, já dava a devida desimportância àquilo que os advogados costumam xingar de "fulcro penal".
Na audiência, ele inquiriu a testemunha de forma cordial, podia não estar conforme a sacralidade da justiça, mas ficava muitíssimo bem no território humano -o único por sinal que eu respeito e considero sagrado. No meio da audiência, rompendo todos os rituais prescritos pelos códigos, entrou um rapaz trazendo cartões que logo identifiquei: eram da antiga loteria esportiva.
Sua Excelência interrompeu o depoimento da testemunha para verificar se os furinhos correspondiam ao jogo que havia feito.
Comentou em voz alta para a plateia, constituída por réus, testemunhas, promotor, advogados de defesa e de acusação, que já gastara os tubos na loteca e nunca passara dos nove pontos. Mas conhecia um sujeito que já descolara os 13 pontos diversas vezes. E saiu-se com essa verdade: "Não há justiça nesse mundo!".
Voltou a interrogar a testemunha com inesperada severidade, até que entraram dois homens com grosso e empoeirado livro. A testemunha contava, com solenes palavras, na qualidade de diretor de um importante jornal do Rio, que convocara a seu gabinete um dos colunistas da casa, a fim de exigir explicações sobre uma nota que fora julgada infame pela autoridade criticada.
O juiz interrompeu: "Não vamos perder tempo com esse fuxico de comadres, eu tenho uma escritura para examinar, minha filha casou-se com um cara que é uma toupeira, imaginem que ela comprou um terreno em Jacarepaguá e a besta do meu genro nem foi verificar a metragem exata, do lado direito tem 42 metros, mas na escritura está 24, tenho de ler toda essa papelada, a gente pensa que quando casa uma filha fica livre de problemas, pois o problemas aumentam, e aqui está a besta do pai para consertar as coisas".
Mandou que os homens sentassem a seu lado, folheou o livro das escrituras, gastou mais de meia hora discutindo com os caras.
Para relaxar, pediu que o contínuo servisse café a todos, menos para ele, que preferiu um chá. Recusou o açúcar, pingou na xícara as gotas do adoçante que tirou da gaveta. Não sem antes declarar que o açúcar era um veneno.
Nessa altura, eu me considerei o mais bendito dos réus diante do mais humano dos juízes. Ainda que ele me condenasse, teria valido a pena.
Folha de S. Paulo (RJ), 3/4/2009