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Jornal antigo com grande cena na alcova da rainha

 

Vou contar uma história que poderá parecer inverossímil, mas é verdadeira, embora fantástica. Um sujeito -cujo nome não importa, mas que viveu realmente, sendo inclusive vizinho de um tio que morava no Grajaú-, ali pelos 50 anos, decidiu fazer uma viagem pelo mundo, mas foi sozinho, sem levar mulher e filhos. Deixou dinheiro suficiente para os dois anos que passaria fora e uma instrução suplementar, diria que pétrea: em sua ausência, a família compraria, todos os dias, os jornais que ele habitualmente comprava, inclusive edições extras, se as houvesse.

Tudo deveria ser guardado religiosamente, em ordem cronológica, e deviam ser tomadas cautelas de preservação, impedindo que baratas roessem os jornais e a poeira os maltratassem. Ele não podia prever que, estando em Lubeck, lá em cima, onde a Alemanha acaba, nas margens do Báltico, tivesse um mal-estar e fosse internado num hospital, onde passaria mais de dois anos.


Prosseguindo a viagem e descendo em direção ao Mediterrâneo, passou mal outra vez, desmaiando numa rua de Cracóvia, onde ficou mais dois anos num hospital. E, assim, sucessivamente, ia descendo em direção ao Mediterrâneo, passando mal e se internando em hospitais onde ficava, em média, dois anos -menos na Sicília, onde passou três anos num hospital de Catânia. Daí que, somando tudo, esteve fora do Brasil exatos 22 anos, tempo para burro.


Evidente que encontrou tudo mudado, ele próprio havia mudado. Perdera a mulher e dois de seus filhos, estava agora com mais de 70 anos e, achando que já havia feito muito e vivido igualmente muito, não precisava nem tinha vontade de fazer nem ao menos um pouco. Organizou uma estrutura doméstica que consistia nos dois filhos que haviam sobrado, e que eram adultos e desinteressados de sua pessoa, duas empregadas e um secretário que, entre outras manias esquisitas, tinha a de se chamar Godofredo.


Criou também uma rotina doméstica que incluía, pela manhã, duas horas de leitura dos jornais acumulados; e duas horas igualmente diárias pela tarde, havendo dias em que, por um motivo ou outro, acrescentava mais duas horas à noite, antes de se recolher ao leito que nem era leito, mas uma rede cearense que, durante sua ausência, lhe fora presenteada por um vago parente de Sobral.


Inicialmente, tentou obedecer a seqüência das datas, mas achou pouco interessante saber no dia seguinte o que havia acontecido na véspera. Descobriu que podia, aleatoriamente, movimentar-se para frente e para trás no passado, sem apelar para a memória -já estava cansado dela e dela nada obtinha senão, como diz o Eclesiastes, "vaidade e aflição de espírito".


Leu num jornal de 1984: "O aposento particular da rainha da Inglaterra foi invadido, na manhã de ontem, por um cidadão desempregado que sentou em sua cama, acordou a soberana e insistiu em conversar com ela. Falaram sobre vários assuntos, comentaram filmes que haviam assistido e a rainha ficou sabendo que o sujeito tinha três filhos e uma cadela irlandesa chamada "Sorry". A conversa não foi adiante porque, meia hora depois, um mordomo estranhou a rainha ainda estar na cama e chamou o príncipe-consorte para que tomasse providências. O príncipe tinha dormido mal naquela noite, sentira sede e fora à copa dos aposentos privativos do casal, mas estava estremunhado e errou o caminho, indo parar no quarto da camareira Sullivan, que estava de plantão naquela semana.


"Surpreendendo um estranho na cama da rainha, o príncipe pensou em pedir explicações a ambos, mas reconsiderou. Tratava-se de um louco, sem dúvida. Com um movimento discreto, levando um dedo na testa e rodando não a testa, mas o dedo, a rainha confirmou o diagnóstico do marido. Convidaram o intruso a tomar o "breakfast" no cômodo ao lado.


"O desconhecido recusou o convite, dizendo que já tinha até almoçado: estando sem emprego, tomava uma sopa e comia um pedaço de rosbife com ervilhas maduras numa instituição de caridade vizinha ao palácio. Assim, se mantinha alimentado pelo resto do dia. Despediu-se, desejou felicidades à rainha e saúde ao príncipe, notando-o abatido pela noite mal dormida.


"Tão logo o intruso desapareceu, e avisado pelo mordomo, o primeiro-ministro chegou furioso ao palácio para se inteirar do que acontecera ou não acontecera. E antes que a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns entrassem em sessões de emergência para analisar o incidente, o primeiro-ministro mandou investigar todos os funcionários daquele andar do palácio, na suposição de que o intruso teria contado com a cumplicidade ou com a omissão de um deles.


"E, sabendo que o príncipe acordara com sede durante a noite e, indo à copa beber água, entrara por engano no quarto de uma camareira, o primeiro-ministro enviou uma medida provisória ao Tesouro de Sua Majestade pedindo uma verba especial para comprar um frigobar naquele mesmo dia, dispensando qualquer tipo de licitação pública."




Folha de São Paulo (São Paulo) 02/09/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 02/09/2005