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Jorge e Zélia

 

A vida do escritor é pública. A morte do escritor é pública. A partir do tempo em que seus livros atraem um número ponderável de leitores, que passam a esperar o próximo romance ou volume de poesia, ou de crônica, começa o escritor a pertencer, por bem ou por mal, a eles, aos leitores que se tornam amigos, aos amigos que se tornam leitores.


Assim que Jorge Amado foi, no fim da II Guerra Mundial, eleito deputado federal por São Paulo, fixou residência no Rio de Janeiro, e eu, que assinava críticas de cinema em "Diretrizes", fui convidado por Mário Peixoto para integrar o pequeno grupo que, em casa de Carmem Santos, a atriz e produtora de cinema, preparava um script inicial para um filme baseado numa história de luta pela independência do Brasil havida na Bahia, antes de Inconfidência Mineira. Assim, todas as noites, Carmem Santos, Jorge, Mário e eu discutíamos como contar a história do movimento baiano.


Zélia, recém-casada com Jorge, participava do trabalho. De repente, o governo Dutra fecha o PCB, os congressistas do partido perdem seus mandatos, Jorge Amado exilou-se na Europa com a família e o projeto do filme de Carmem Santos foi por água abaixo. Isto aconteceu em 1946. Somente nos anos 50 Jorge voltaria para o Brasil e, a partir de então, eu já casado com Zora, com Jorge e Zélia formamos um grupo.


Éramos hóspedes deles em Salvador, eles passavam temporadas em nosso apartamento de Londres e os quatro viajamos juntos, pela Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, França, Polônia, Bulgária, Itália, Espanha, Portugal, mais tarde Estados Unidos e Argentina. Assistimos a homenagens a Jorge em todos esses países, fiz conferências sobre a obra dele em toda parte, até que os quatro voltamos a morar na terra materna.


O livro de Zélia Gattai, agora lançado pela Record, "Vacina de sapo", narra os últimos tempos de Jorge Amado, até o fim. Seu texto mostra a luta, que luta foi, para superar o enfraquecimento do corpo. Zélia, João Jorge e Paloma à frente, mesmo doente Jorge foi a Londres falar numa universidade, esteve em Paris, homenageado na Sorbonne, e Zélia menciona as últimas vezes de Jorge no Carnaval, partícipe que era de desfiles no Rio de Janeiro e em Salvador, com seus personagens figurando em carros alegóricos, mas de vez em quando havia momentos de preocupação.


Nesses últimos anos de vida, mostrava-se Jorge Amado ainda mais Jorge Amado e é assim que Zélia o apresenta ao longo das páginas de "Vacina de sapo". Analisando o escritor e suas certezas diz Zélia que, de todos os personagens criados por Jorge, o que mais se parece com ele mesmo é Pedro Arcanjo, de "Tenda dos milagres". Completa: "Tenda dos milagres" é o romance que - sem medo de errar - mais retrata seu autor.


Eu encontro em Pedro Arcanjo facetas do caráter e da personalidade de Jorge. Pela boca de Pedro Arcanjo, ele repetia o que pensava. Num dos capítulos do livro, ele fez o mestre dizer uma frase sua, em resposta que dera um dia a alguém que o provocara: "Como é que pode, Jorge Amado? Você se diz materialista e é Obá de Xangô, freqüentando terreiros de candomblé?" Ao que Jorge respondeu: "Sou materialista, mas meu materialismo não me limita."


Que ele era Obá de Xangô, do Ilê do Opô Afonjá de Mãe Senhora, ialorixá famosa que tivera como sucessora Mãe Ondina e esta, por sua vez, cedera, ao morrer, o lugar à Mãe Stella de Oxóssi, tudo isto se sabia e fazia parte do conhecimento geral sobre o criador de Pedro Arcanjo. Quando Sartre esteve na Bahia, Jorge o levou para assistir a uma festa de Xangô no Opô Afonjá. Mais tarde, Sartre comentaria em Paris: "Foi o espetáculo mais belo que vi no Brasil."


Em 2001, Jorge completaria 89 anos. Apesar de seu estado de saúde, a família pensava numa festa. Ele voltara a passear pela manhã, mas quase sempre apenas pelo jardim da casa. Quando se cansava, ele e Zélia sentavam-se no banquinho que havia embaixo da mangueira que ficava bem no centro do local. Eis como o livro de agora menciona o 6 de agosto de 2001, quatro dias antes do aniversário de Jorge Amado: "Paloma, que passara o dia todo ao nosso lado, tinha um compromisso, precisou sair. Antes de chegar à garagem, no fundo do jardim, levou uma forte queda e voltou para casa. Em seguida à saída de Paloma, percebi de repente que, com a mão sobre o peito, Jorge gemia baixinho. Nem precisei chamar pela minha filha, ela voltava depois da queda, eu já não estava só na minha aflição. Telefonamos, em seguida, para Jadelson, que ordenou que o levássemos imediatamente para o hospital. Os males do coração, que havia algum tempo não davam sinal de vida, voltavam a se manifestar, desta vez dando sinal de morte. Nesse mesmo 6 de agosto Jorge nos deixou."


Zélia cita então as últimas palavras do livro de memórias de Jorge Amado, "Navegação de cabotagem": "Não vou repousar em paz, não me despeço, digo até logo, minha gente, ainda não chegou a hora de jazer sob as flores e o discurso."


"Vacina de sapo e outras lembranças", de Zélia Gattai, é um belo e comovente livro sobre Jorge Amado e ela. Égide da Record, orelha de Luíza Ramos Amado.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 10/1/2006