Há muitos anos, lá em Itaparica, todos os presentes a uma seleta mesa no bar de Espanha mostraram grande surpresa e mesmo incredulidade, quando, convidado a participar de um joguinho de biriba, Zé de Honorina se recusou e fez uma revelação de impacto.
- Não jogo – disse ele. – Eu só sei jogar roubado. Então não vou jogar, porque, se jogar, eu tomo o dinheiro de vocês todos sem apelação.
- Mas o jogo não vai ser a dinheiro.
- Não muda nada. A dinheiro ou a leite de pato, dá no mesmo, eu só sei jogar roubado, não adianta.
Comentários céticos, indagações perplexas. Afinal, Zé era pessoa unanimemente respeitada na coletividade, comerciante de excelente nome na praça e cidadão exemplar, não era possível que aquilo fosse verdade. Mas era, insistiu ele, reiterando a disposição de nunca mais pegar num baralho. Acrescentou que, em sua vida, não tão longa mas muito movimentada e viajada, já passara por quase tudo, inclusive pela, digamos, vicissitude de ter de sobreviver do carteado, ofício incerto e infestado de percalços. E, no começo para se defender, mas logo para se escudar dos maus caprichos da sorte, também aprendera todo tipo de trapaça para ganhar. E então se dera o fenômeno que ele considerava inevitável, para qualquer um que experimentasse jogar e ganhar roubando: impossível, daí em diante, jogar sem roubar. Bastava aprender e praticar, ainda que somente um bocadinho.
- Sabe cachorro, quando fica pedindo comida junto da mesa do almoço? – finalizou ele. – Pois é, não se pode dar comida a ele nem uma vezinha, porque, com apenas essa vezinha, ele se vicia para todo o sempre e nunca mais deixa de mendigar junto da mesa. Jogar roubado é igualzinho, é reflexo. O sujeito até parte com a melhor das intenções, pode até rezar um padre-nosso para resistir à tentação, mas, na hora em que bota a mão nas cartas, não tem escapatória, é muito pior que vontade de fumar depois de um cafezinho.
Recordei-me disso ao continuar vendo por todo canto notícias sobre a violação de dados sigilosos na Receita Federal. Em meio a declarações contraditórias, negativas, bravatas, denúncias e outras manifestações próprias de campanha eleitoral, fala-se muito no envolvimento de membros do PT na violação. Não tenho tido muita paciência para acompanhar essas novas irregularidades que, como todas as outras, vão acabar sem culpados e muito menos punidos, de maneira que conheço somente um pouco do que vem sendo noticiado, mas, para o que pretendo lembrar, isto não tem importância.
Por que o PT, com a eleição no papo, iria precisar de golpes baixos? Pergunta retórica, a que eu mesmo respondo: porque, como meu amigo Zé no carteado, quem aprendeu a jogar sujo não consegue jogar limpo. Mas também faço a ressalva: não é coisa exclusiva de militantes do PT, é coisa nossa. Ou seja, acho que nós, brasileiros, estamos – não só coletiva como individualmente, em graus diversos – adaptados ao jogo roubado, não sendo, pois, de estranhar que militantes mais sôfregos usem as armas que se acostumaram a ver funcionar a vida toda. Vêm por aí mais empregos públicos ou semipúblicos e o adesismo já se mostra pujante, como também é do nosso hábito.
Não se pode acreditar que os vazamentos na Receita começaram agora. Creio mesmo que os mais calejados em matéria de Brasil já estão convictos, se é que algum dia não estiveram, de que esses vazamentos sempre existiram, tanto assim que alguns dos implicados aparentemente exercem esse tipo de atividade faz bastante tempo e dados do mesmo gênero já são vendidos abertamente há anos ou décadas. Não será de todo paranoico aquele que receie já ter sido formada uma quadrilha para afanar dados do censo, agora talvez até com mais facilidade do que antes, porque esses dados são informatizados desde o estágio da coleta, o que, com certeza, cria mais áreas vulneráveis. Quem garante que as informações pessoais que os recenseados deram em confiança já não estão entrando num banco de dados privado, que depois poderá servir a todo tipo de propósito, até mesmo para a ação de quadrilhas de assaltantes de alta tecnologia? Claro, ninguém garante e, apesar de justificados em desconfiar, temos que continuar confiando, do contrário será impossível viver. E, também claro, vamos preferir acreditar que certos limites, como esses relacionados com o censo, nunca serão ultrapassados.
Nós somos o país das certidões e atestados falsos. Muitos já os receberam ou emitiram e todo mundo pelo menos conhece alguém que os utilizou ou utiliza. Não me refiro somente aos atestados médicos, mas até ao antigo atestado de pobreza, que era usado por ricos para não pagar por serviços que, para os indigentes, eram gratuitos. A todo momento somos informados de esquemas para fraudar concursos públicos, vestibulares e semelhantes. E desses esquemas sabemos somente os que foram descobertos. Temos, assim, o direito, que certamente preferíamos não ter, de duvidar de todo concursado e de encarar com um pé atrás qualquer diploma. E até inventamos a firma reconhecida em cartório e logo depois a falsificação do reconhecimento de firma.
Por aí vai, num rosário que talvez muitos de vocês saibam desfiar melhor que eu. Não são somente os petistas, somos nós, os que jogam roubando, PT ou não PT. Cabe, no entanto, observar que o PT está no governo e, se o governo não obedece à lei, quem obedecerá? E não fica bem o presidente falar como se esse “tal de sigilo” fosse uma pessoa. Ele fez isso para mostrar que grande parte dos responsáveis por sua popularidade nem sabe o que é sigilo. É verdade, mas ele devia envergonhar-se disso, não se aproveitar.
O Globo, 12/9/2010