O impacto do jejum de Dom Cappio, na ribanceira do São Francisco, racha a expectativa dos católicos. Responde à carência permanente de heróis na nossa cultura e pela nitidez da coragem radical do testemunho religioso. E nesses dias contagiou o país inteiro, e a repetição do mesmo gesto, pela solidariedade com o Bispo, reacorda a sociedade civil, machucada pelo escândalo continuado na Praça dos Três Poderes.
O apoio vai à força do lance, mas pergunta-se do real sentido do sacrifício e, sobretudo, de sua importância final para o bem-comum do Nordeste, diante de um projeto de mudança econômica e social, no âmago do Brasil dos destituídos. Dom Cappio assume a própria morte no seu desprendimento, ainda que o desfecho não aconteça, graças ao plantão da vida, no dever de assisti-lo, à última hora. Mas é possível ao cristão comprometer a sua existência fora do testemunho das verdades da fé? O jejum de Sobradinho não é martírio, mas vai às bordas de um suicídio. A insistência do gesto, por outro lado, passa à imposição de conduta pública, em matéria que não primariamente da Igreja e, essencialmente, controversa.
Não estão em causa princípios do credo, e a ação evangélica pelos diocesanos não se estende à generalidade do povo de Deus à sua volta, nem goza da unanimidade dos outros pastores da região. Pelo contrário, é negada por outros Arcebispos, como o da Paraíba, também à frente da mesma esperança e de um mesmo anseio dos desmunidos. O São Francisco não é de seus ribeirinhos, nem há que se reduzir o alcance do que pode a água para a mudança da terra à sua volta.
A Igreja pós-Vaticano II só fez reafirmar a sua independência do Estado e, como contrapartida, deixar a César o que é de César, e não pretende a última palavra em assuntos estritos das políticas públicas. Poucos projetos foram tão debatidos quanto o do desvio das águas, na melhor tradição democrática do presente governo, e o Episcopado da região tem múltiplas visões sobre o seu impacto.
Dom Aloísio Lorscheider, diante de João Paulo II, em Puebla e em São Domingos, falou da injustiça estrutural da pobreza brasileira e do quanto a sua mudança é, também, estrutural. O projeto derruba a indústria vergonhosa dos caminhões-pipa e da venda d’água. Atende à carência da maciça população urbana da área e garante à zona rural difusa o projeto das cacimbas, no compromisso repetido, e ampliado agora, do governo. Beneficia 12 milhões de brasileiros de logo, contendo decisivamente a migração para o Centro-Sul do país.
Dom Luiz Strenghini nos repete que o Bispo de Barra é “um bom homem e não será isolado”. O Cardeal Ré do Vaticano lembra-lhe que, como católico, a vida não é sua, mas o arrebatamento da generosidade pode levar o religioso a perder a escuta. Declarar à CNBB a solidariedade à causa é o preço de estar, in extremis, ao seu lado. O Brasil da mudança passa pela Igreja do pós-Vaticano, profética no sacrifício e no empenho de cada dia, sem o excesso do gesto-limite: passa por Dom Hélder, antes de Dom Cappio.
Jornal do Commercio (RJ) 21/12/2007