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Já vimos este filme

 

Se sua candidatura fosse mesmo para valer, o novo presidente da Argentina, Javier Milei, teria se preparado para a missão quase impossível que tem pela frente. Como tudo indica que não esperava vencer, pelo menos no início da campanha, não preparou um plano com começo, meio e fim para enfrentar a tragédia argentina.

Milei, embora sendo mais contido no discurso de posse, não se referindo às propostas mirabolantes que apresentou na campanha, como dolarização sem dólares ou o fim do Banco Central, começou abusando do poder que ganhou ao mandar gravar no bastão presidencial a cara de seus cachorros. Absurdo, porque o bastão não é dele, é do presidente da República eleito.

Numa cena digna de uma chanchada sul-americana, mostrou para a presidente do Senado, Cristina Kirchner, o bastão esculpido, o que arrancou gargalhadas da adversária política. Mudou também a lei do nepotismo, para colocar a irmã — a quem obedece — como secretária-geral da Presidência, acumulando a atividade com a de primeira-dama.

Tudo indica que não dará certo, dentro de pouco tempo deveremos ter uma crise na Argentina. A situação no país vizinho é horrorosa, e Milei não parece ter força política para implementar as reformas necessárias. Nem parece ter um plano de ação razoável para isso, não anuncia nada, só diz que vai fazer um ajuste de 5% do PIB, uma imensidão. Provocará reações dos sindicalistas peronistas e dos funcionários públicos. Na maioria também peronistas, culpados em geral pela crise argentina, mas que só fazem política com populismo e agressões.

Embora seja necessário fazer uma reforma radical na economia argentina, é preciso mais que isso, indicar o futuro. Mas não parece haver um plano para ser anunciado, e o adiamento das medidas mostra que ele não se preparou adequadamente para tomar medidas duras e pedir apoio da população. Milei guarda segredo, não diz o que vai fazer. Quando anunciar, as decisões cairão como uma bomba numa sociedade já abalada psicologicamente.

Temos exemplo histórico recente desse improviso irresponsável, quando a equipe econômica do presidente eleito Fernando Collor decidiu na véspera da posse, em 1989, por sorteio, o tamanho do bloqueio nas contas dos cidadãos. A postura de Milei, que escreve palavrão no livro de ouro da Presidência, indica que é possível uma solução aparentemente salvadora — uma bala de prata, um ippon — ser engendrada por ele com seus cachorros, com quem diz conversar, especialmente o falecido Conan, clonado em laboratório nos Estados Unidos.

Se tivesse um plano bem estruturado e anunciado, como o nosso Plano Real, o apoio da população poderia vir. Mas o jeito de ele fazer política não levará a um bom final. A paciência dos cidadãos com seus governantes está cada vez menor. Milei pediu aos argentinos dois anos de paciência para melhorar a economia, mas não existe mais “período de graça”. Normalmente eram seis meses, talvez o primeiro ano. Não vejo como ele poderá governar dois anos com apoio da população sacrificada.

Especialmente Milei, eleito justamente com a promessa de destruir tudo para reinventar a Argentina. Sua eleição para presidente mostra justamente que o cidadão argentino, altamente politizado e educado, não via outra saída a não ser uma maluquice que virasse o país de cabeça para baixo. Se isso resolveria os problemas históricos, não vinha ao caso, pois a alternativa ofertada era mais do mesmo.

A má notícia é que nós, que já vimos esse filme com Jânio, com Collor, com Bolsonaro, sabemos que o final não é bom.

 

 

 

 

O Globo, 12/12/2023