Bem verdade que eu não estou lá, no centro dos acontecimentos, mas procuro permanecer sempre bem informado sobre o que se passa na ilha, porque lá sempre nos encontramos na vanguarda do pensamento nacional, desde o tempo em que a moda era a antropofagia e nós fomos dos primeiros a comer portugueses. (Depois passamos também a comer portuguesas, mas esta já é outra questão, não confundamos as coisas.) Cheguei mesmo a tentar obter a opinião de Azeda (pronuncia-se Azêda), que teve a gentileza de me atender no orelhão do Bar de Espanha. Procurei-o porque ele representa, de várias formas, a opinião do povão da ilha e seria muito esclarecedor conhecê-la.
A educação do itaparicano, contudo, impediu que eu realizasse meu intento. Azeda, em impecável demonstração de cortesia, fez questão de perguntar pormenorizadamente sobre minha saúde, congratular-me mais uma vez pela minha aparição no Fantástico há algumas décadas, mandar lembranças para toda a família e pôr seus modestos préstimos à minha disposição. E receio que a educação tão eloqüentemente demonstrada também tenha impedido respostas mais reveladoras sobre o que eu estava querendo saber. Indaguei qual era a posição dele quanto ao problema da Amazônia.
- O senhor, o que é que acha?
- O que interessa não é o que eu acho, é o que você acha, Azeda.
- Eu acho o que o senhor acha. A vida toda eu estive com o senhor e não ia ser agora que eu ia mudar. Uma coisa que eu não sou é vira-casaca. Quando eu dou meu apoio, meu apoio está dado, é ali com superbond e parafuso. Então o senhor fique tranqüilo, porque estou com o senhor nesse e todos os outros problemas, não precisava nem perguntar. Esse problema da Azamônia mesmo...
- Amazônia.
- Sim, Anazômia. Estou com o senhor e não abro. O senhor é a favor? Eu também sou! Esse problema...
- Mas eu não sou a favor. Aliás, não é...
- Eu quis dizer que sou a favor de quem é contra, como o senhor! A favor do contra! Ninguém se engane comigo no meu apoio ao senhor! Vai ter voto nisso?
- Não, acho que não, pelo menos por enquanto.
- Ah, então já é uma economia, não se gasta nada com voto. Mas, mesmo assim, no pé-de-vento que deu sexta-feira, voou o resto das telhas da sala e eu estou um pouco necessitado de um adjutório pequeno, uma coisa assim para umas cem telhas e...
Continuamos um pouquinho o papo, Azeda reiterou seu apoio a mim mais umas dez vezes, eu prometi pensar no negócio das telhas e a pesquisa ficou prejudicada, embora eu não tenha desistido, até porque cometera um equívoco imperdoável. Havia esquecido do recém-criado Círculo de Estudos Santa Luzia, com sede provisória no Mercado Municipal do mesmo nome. Que estariam pensando os intelectuais? Procurei Zecamunista, é claro, mas ele não tinha chegado ainda ao bar, detido que devera ser para fazer um comício aqui, outro ali, no caminho. Mas Jacob Branco, que, segundo alguns, mora no bar secretamente há anos, me falou.
Bem, de início o Círculo pensara em fechar posição contra qualquer mexida na Amazônia e manifestar publicamente essa opinião, mas Zecamunista, como sempre subversivo e original, fez um discurso que abalou todo mundo. Proclamou que era uma burrice arcaica esse negócio de manter a Amazônia. Aliás, era uma burrice arcaica manter o Brasil todo. Não deu certo, nunca vai dar certo e só faz cobrar impostos e promover recadastramentos. Manter isso só por vício, mania de grandeza, posições políticas ultrapassadas? Errado, tudo errado, inclusive não tornar os territórios índios independentes, independência para todos, índio também é gente, índio quer apito, viva a autodeterminação dos povos! É o que vai acontecer de qualquer forma, inclusive com o apoio da ONU, de maneira que o esperto era antecipar o inevitável e ainda levar algum. O que desse para vender, a gente vendia, dando um jeitinho de taxar as propinas, para botar um trocado em caixa.
E ia continuar, quando Zecamunista em pessoa chegou, ocupou o orelhão e me contou que suas idéias tinham avançado muito, durante a noite anterior. Agora a posição dele era deixar que o Brasil se virasse lá como ele quisesse, porque seu interesse era um novo país. E que país! Inicialmente, haveria a fase de testes, com o estabelecimento do Eixo Autônomo Rio-Bahia, os dois únicos Estados atuais com chances de opulenta prosperidade, sem esforço. A meta final seria formar um país só e até o fato de o Espírito Santo estar no meio dos dois não atrapalharia, porque, depois que o novo país (o povo mesmo daria o nome, mas ele já tinha pensado em Guanabahia, Bahioca ou, ainda, Esborniel) se constituísse, invadiria o Espírito Santo com quatro divisões vindas do Sul com escolas de samba e mulheres peladas e quatro do Norte com trios elétricos e todo mundo pelado. A adesão dos invadidos, com imediata anexação, seria instantânea.
- Seria o único país com um Ministério do Agito e da Esculhambação! - bradou ele, cada vez mais exaltado. - Ninguém ia fazer nada, a não ser tomar dinheiro de gringo e ir à praia. Seremos o melhor país do mundo! Caymmi para presidente, não fazendo nada, e Gabeira para primeiro-ministro, dando audiência de sunga! Seremos um exemplo único, a salvação da Humanidade! Bye-bye Brazil!
O Estado de S. Paulo (SP) 27/4/2008