Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Iremos nos ver na parusia

Iremos nos ver na parusia

 

Cada virada de ano é a mesma coisa. Vontade de revê-lo, uma certa inconformidade, reler Sto. Agostinho (“a sede da alma está na memória”) desfazer os cachos de pranto, tentar ir à frente, enfim, saudades do filho Marcantonio. É incontrolável a vontade de dividir com mais gente a ideia de que êle se foi e a tentativa de conviver com os desígnios de Deus, nas elipses de felicidade.

Num livro incontroverso – As amargas, não – Alvaro Moreyra diz assim: “... deixou em mim uma lembrança de pássaros, flores. Era criatura mandada por Deus à terra, onde pouco demorou. Retornou para os jardins que fazem a primavera eterna, lá longe, além das estrelas”. Igualzinho ao que sentimos, Maria do Carmo, eu e os irmãos de Marcantonio.

Nestes dias, a dor foi reforçada pela homenagem no jornal espanhol El dia, onde chamando-o de mítico, justamente a ele se atribui a inscrição de artistas brasileiros contemporâneos no mercado mundial das artes plásticas mundiais. Avaliação positiva de fora do Brasil, como sempre, sem os vícios do julgamento de quem não teve dele, aqui, palavra de maior louvor. E estava certo. Esse tipo de artista ficou patinando no mesmo, perdeu a vez pela insistência no mesmo. A fila andou. Qualquer lugar do futuro não pode ser convencional.

Coube a Marcantonio (já faz quatorze anos que partiu, na eternidade do minuto, que horror) o gesto imperecível da responsabilidade, entendendo que a criação é o sopro do espírito na matéria. Já disse, e repito, que lhe tocou empreender astuciosa travessia pelas diagonais da compreensão da arte.

Por tudo isto, Carmo e eu convocamo-lo para o quotidiano. Nas academias de letras aprendemos, desde os discursos de posse, a chamar à vida os nossos mortos. É assim que construímos a tal imortalidade. A memória não pode ser relapsa.

É preciso sempre aquecer a lembrança.

Convencemo-nos, os da família Vilaça, e uma legião de amigos – bons amigos solidários – ter Marcantonio compreendido a lição de Eduardo Portella de que se deve buscar o equilíbrio do racional que sugere não transgredir, com o descobrir, o inovar, o ultrapassar, que são vertentes do emocional. Por essas e outras é que é mítico. Por essas e outras virtudes pôde fazer juízos, optar por promover muitos, a recusar uns poucos e, até mesmo, exercitar a sua ironia fina e forte, espécie de ironia trufada.

Sou leitor em permanência de Roberto da Matta e não o esqueço ao falar que a palavra saudade é forma polida, pelas lágrimas, de dizer soledade, solidão.

O silêncio nosso em torno de Marcantonio é muito sonoro, compartilhado, orgulhoso, quebrando soledade e solidão.

No próximo ano a CNI vai promover um grande ato, precisamente em maio, no Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro) sob as bênçãos do seu presidente, Robson Andrade, de reconhecimento e registro do trabalho de Marcantonio. Dá-nos muita honra tudo isto, de o empresário se voltar para questões culturais, como já fez no passado o seu ex-presidente Armando Monteiro Neto.

Agora, repita-se Manoel Bandeira:

“O meu dia foi bom, pode descer a noite”.

Na noite que for um chão de estrelas, existe uma delas que há de escutar, daqui da terra os pais a dizer:

Filho: nos veremos na parusia.

Afinal de contas, tem razão o centenário Vinícius de Moraes ao cantar que tristeza não tem fim, felicidade sim.

Jornal do Commercio (RJ), 10/12/2013

Jornal do Commercio (RJ), 10/12/2013