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Invenção carioca

 

‘Bala perdida’ é uma invenção carioca perversa. Quando não se descobre ou quando se quer esconder a autoria de um crime, diz-se cinicamente que a culpa foi da bala, como se ela tivesse livre-arbítrio. Somente este ano, a plataforma Fogo Cruzado calcula que cem pessoas foram atingidas pelo mal, inclusive as lindas meninas Rebecca, de 7 anos, e Emilly, que ia fazer 5. O crime chocou os que ainda não se conformam com esse tipo de acontecimento que, aqui, é cada vez mais um lugar-comum. Numa das concorridas manifestações no fim de semana, a grande faixa estendida no chão conclamava, inútil e dramaticamente: “Parem de nos matar”.

As duas fofas eram primas e, sempre muito alegres, estavam brincando na porta de casa em Duque de Caxias quando foram surpreendidas. Emilly chegava a ser chamada de “fuzuê”, um termo que minha mãe usava em Minas e eu não ouvia há décadas. Vizinhos e parentes afirmam que partiu da Polícia Militar o tiro que atingiu a mais velha no abdômen e a outra na cabeça. A polícia nega os disparos, mesmo assim diz que vai abrir um procedimento. Não precisa ser avô e ter netos pequenos para se comover com essa história, que é o destino que ameaça a maioria das crianças negras da periferia.

Por falar em Caxias, parabéns ao prefeito eleito Eduardo Paes pela escolha de Marcus Faustini como futuro secretário de Cultura do Rio. Nascido em Caxias e criado em Santa Cruz, na Zona Oeste, o escritor, diretor e cineasta, autor de várias iniciativas voltadas para os jovens da periferia, tem agora seu talvez maior desafio: recuperar um setor com pouca verba e muitas dificuldades, decorrentes de dois vírus, o da pandemia e o de Marcelo Crivella.

Faustini confia muito na vontade política do prefeito, que, segundo ele, está comprometido em “garantir o papel da cultura na retomada da cidade, de Santa Cruz ao Leblon”. Pelo visto, nada de cidade partida.

O Globo, 09/12/2020