Para a mídia politicamente correta daquela época, a palavra "câncer" era palavrão, só funcionava quando se tratava do trópico que fazia dobradinha com o Trópico de Capricórnio.
Não havia a doença, ninguém morria de câncer. Morria-se de uma insidiosa moléstia. Não sei qual foi o gênio que arranjou o adjetivo (insidiosa) para se referir à doença, deve ter sido o mesmo que trocou "cemitério" por "necrópole" e "hospital" por "nosocômio".
Ali por volta dos anos 60, escrevi uma crônica cujo título era "O câncer do piloro". A dona do jornal pediu-me pelo amor de Deus que trocasse a palavra -o marido, que era realmente o dono do jornal, estava na Suécia tratando exatamente de uma insidiosa moléstia.
Esse tempo passou, fala-se e escreve-se normalmente o nome da doença, tantos são os doentes e tantos são os tratamentos que diminuíram a insídia da moléstia. Para não ir muito longe, cito dois casos, um pessoal, outro público. Nossa presidente deu a volta por cima e rogo a Deus que a mantenha bela e operosa para todo o sempre. O mesmo desejo para Lula e desejo também para mim.
Acontece que tive a tal insidiosa moléstia em 2004, exatamente como dona Dilma, na forma de um linfoma não Hodgkin de baixo grau. Fiz e ainda estou fazendo os ciclos de quimioterapia e minha vida continuou a mesma, só pedi uma diminuição de trabalho -antes, fazia oito crônicas por semana, agora faço quatro, de maneira que a insidiosa moléstia aliviou os leitores e expurgou o jornalismo de textos também insidiosos.
Conhecendo várias pessoas que estão na mesma situação (a quimioterapia é ambulatorial), já ouvi de vários especialistas que o câncer não é mais uma doença mortal, podendo ser tratada com recursos cada vez mais eficazes.
Folha de São Paulo, 1/11/2011