Mal saído de uma gripe que colocou em risco minha condição de imortal da ABL, peguei um entupimento da trompa de Eustáquio que me causou vexames. Eu pensava que esta tal trompa desse tal Eustáquio fosse alguma coisa ligada ao aparelho genital feminino, daí minha surpresa quando o otorrino me garantiu que eu tinha uma, aliás duas, uma em cada ouvido.
Fiquei interinamente surdo e senti a solidão de um surdo. Pior do que o cego, que não é discriminado socialmente, pelo contrário, é amparado e afagado, o surdo é evitado. Acenam para ele, ligeiramente, e logo saem de perto, pois fica difícil conversar com eles, a menos que usem aquele aparelhinho redentor.
Não era o meu caso. Purguei parte de meus pecados durante uns três dias e lembrei-me da época em que, membro do Conselho Estadual de Cultura, sentava entre dois colegas meio surdos. O Abdias, à direita, era surdo do ouvido esquerdo. E o Ivolino, à esquerda, era surdo do ouvido direito.
A soma dos dois resultava num surdo inteiro e com eles eu tive problemas de relacionamento, pois ambos gostavam de conversar e fazer revelações que consideravam importantíssimas.
Exigiam minha opinião e eu não podia dá-la em voz alta durante as sessões. Limitava-me a aprovar ou desaprovar com a cabeça ou as mãos, e como não me interessava abrir polêmica com eles, com eles estava sempre de acordo, ou parecia isso.
Até que, numa votação sobre o tombamento de um prédio em Maricá, os dois tinham opinião divergente e ambos contavam com o apoio que eu havia prometido por meio de sinais.
Quando percebi o desafio de contrariar um ou outro, decidi contrariar os dois ao mesmo tempo, abstendo-me de votar. Recebi a cara feia deles mas fiquei na minha.
Até que chegou o meu dia. Não ouvi o cumprimento amável de um colega, não retribui e ganhei um inimigo, que espero, provisório.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 02/07/2002