Sob o signo de Cecília Meireles vivemos todos os que nos encantamos com a variedade espantosa da poesia neste País de poetas. No ano de seu centenário, 2001, o Rio de Janeiro, seu chão - hasteou a bandeira ceciliana em forma de conferências, seminários, selo comemorativo, leituras públicas de sua obra. Houve reedições de livros de poesia, como "Ou isto ou aquilo" e "Romanceiro da Inconfidência", que se isolam num altar à parte da nossa poética.
No conjunto da obra de Cecília - das definitivas em nossa literatura - surgem os poemas, as crônicas, seus artigos para jornais, sua poesia infantil, como resultado de um exercitar-se que, tendo em si mesmo seu fim, vai além, parece ter dito tudo, mas ultrapassa a palavra que seria a última, repete sons, reproduz sons, como num traço dotado de movimento que escapasse, sempre, aos limites. No meio das novidades significantes desses poemas de Cecília Meireles, plantou "Ou isto ou aquilo", em nossa poética, o mais bem realizado trabalho de onomatopoética já havido no Brasil.
O caminho de Cecília - de uma poesia pura que parecia prescindir das palavras, mas a elas continuando indissoluvelmente ligadas - levava-a ao fundo mesmo dessa bela e solene floração de palavras que se abraçam umas às outras e, ao invés do conflito da briga, provocam o conflito da canção, em que formas batem em formas e saltam em novas formas, num efeito de desenho animado.
Ao longo de sua caminhada de poeta, jornalista, cronista e contadora de histórias em versos para crianças, Cecília Meireles manteve um nível de tal elevação - nos sentidos estético e ético da palavra - que raramente uma nação atinge. Ao fazer seu "Romanceiro da Inconfidência", conquistou um desses momentos civilizados, que marca a presença de um país no tempo. Com este livro firmou linguagem que deve bastar para provar a um povo que ele existe.
No entanto - ou por causa disto - sua poesia em "Ou isto ou aquilo" é, tal como um filme de Carlitos, uma poesia para criança, para ser lida e entendida por criança, o que nos poderia dar um lema destinado a todo poeta: procure chegar a uma poesia que as crianças entendam. O efeito simbolista, inclusive na direção pictórica da palavra, acentua-se a cada verso, nessa conquista de uma beleza vocabular que parece lidar com tintas, coisas, traços, imagens visuais e sons.
Nisto jaz o que chamo de poesia carlitiana: no ato de o poeta não perder ritmo nem palavras para cantar o seu canto; na falta de desconversa.
Na maioria das vezes, poetas e romancistas ficam na desconversa. Anunciam o que vão dizer, preparam, tocam trombetas, mas, no fim, não dizem. É o que Cummings denomina de excesso de consciência de uma arte ou de um artesanato. Em qualquer feitura do homem, há este ir direto ao assunto. Essa direiteza dos versos de Meireles cria uma beleza maior, tornando-os fáceis. E, claro, difíceis também. Nada mais fácil do que um filme de Carlitos. Ou D. Quixote. Ou um poema de "Ou isto ou aquilo".
Em reedições de obras de Cecília Meireles, podemos encontrar: "Crônicas em geral" (3 volumes), "Crônicas de viagem" (3 volumes), todos com apresentação e planejamento do professor e filólogo Leodegário de Azevedo Filho, pela Editora Nova Fronteira. Agora, as editoras Batel e Desiderata lançam "Episódio humano", reunindo textos em prosa-poética inéditos. Um ponto interessante (e proposital) é que os desenhos, tanto da primeira quanto da quarta capa, são de autoria de Fernando Correia Dias, primeiro marido de Cecília e pai de suas três filhas, que era um renomado e concorrido artista plástico.
Eis a apresentação preparada por Cecília Meireles para uma eventual publicação dos textos: "Entre 1929 e 1930, `O Jornal' solicitou-me colaboração para os números de domingo. Dessa colaboração, encontrei vinte recortes, - e não me lembro se poderiam ser mais. Relendo-os, verifico, dez anos depois, que ainda me comovem essas páginas. Nelas está minha vida, em toda a sua pureza, numa fase amargurada de construção. Amo essa tristeza conformada da minha disciplina.
E, olhando para esse tempo de duras experiências, apenas me restaria murmurar: `E a dor tem sempre caminhos mais longos!' Mas tudo parecia previsto. E anteriormente aceito. De modo que um esplendor mágico abre sobre as tragédias um relâmpago. E o coração resiste, pela força do deslumbramento. Hoje, eu apenas falaria, talvez, com menos palavras. Mas é porque, na verdade, já foi usada a minha voz. Naquele tempo, ela acordava com espanto: como o grito dos feridos recentes". Rio, 21 de julho de 1939. Cecília Meireles.
Tribuna da Imprensa (RJ) 15/1/2008