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Improvável, mas a carta chegou

 

Nos anos 50, meu sonho era ter uma jovem correspondente no exterior. Preferia uma francesa, adorava a língua, conseguia ler e escrever razoavelmente. E as francesas tinham um quê de sensualidade, eu via filmes com Cécile Aubry, Martine Carol, Pascale Petit, Françoise Arnoul, que o escritor Alex Salomon idolatrava. Fanny Marracini, professora de francês, me impressionou na primeira aula no ginasial: “Bonjour mes enfants. Isso quer dizer bom dia. Bom dia serão as duas únicas palavras em português que me ouvirão falar durante o curso”. 

Francês ela falou ao longo de muitos anos e assim estudamos Chateaubriand, Lamartine, Stendhal, Flaubert, Prévert, Balzac, Victor Hugo, Dumas, Cocteau, chegamos a Collette, George Sand, Camus e, quando surgiu Françoise Sagan, célebre aos 18 anos, best-seller, com um romance que assombrou o mundo, Boa Dia, Tristeza, vi que se podia ser uma estrela, escrevendo. Esperem aí, não explica minha carreira, não. Foi dona Fanny quem me conseguiu uma correspondente na França, Francine Defrancq e era de Mulhouse, Alsácia. Levei dois dias para escrever em francês, levei à dona Fanny, que me corrigiu e elogiou. 
 
Mandei e esperei. Quando mandávamos carta, sabíamos que esperar era virtude. Esperar com ansiedade, a cada dia, e imaginar o que a pessoa responderia. Passados treze dias, ao chegar em casa no começo da noite, meus pais, rindo, rindo, me entregaram o envelope com bordas em azul escuro e vermelho. Da França.

Sempre me submeti a testes de paciência, por ouvir minha mãe dizer: a paciência é uma virtude, torna a pessoa melhor. Só que ela é difícil. Hoje, a paciência se volatizou. Todo mundo vive ansioso, nervoso, angustiado, apressado, acelerado. Minha amada tia Terezinha usava uma palavra que pouco ouvi em minha vida: açodado. Famosa na família era a expressão dela, “você parece um Bernardino flagelado”, diante de uma pessoa impaciente, excitada, inquieta. Há meio século, meu primo Zezé Brandão, filho dela, publicitário em Araraquara, procura a origem do Bernardino.

Bem, aquela foi a primeira carta de uma série que se prolongou por anos. Francine escrevia com regularidade em papel rosa, tinha letra pequena, às vezes eu precisava adivinhar. Ela contava da vida cotidiana, de costumes, me corrigia, indicava filmes, livros e me enviava revistas como Cinémonde, Positif e Jeune Cinéma. Dela, recebi uma foto do filme O Salário do Medo. Ela foi fazendo minha cabeça. Nem imaginam o que aquelas cartas que atravessavam o oceano significavam para mim. Eram minha janela, libertação, eu não estava restrito a mesmice do meu dia a dia. Deixava de ir ao cinema – o que era quase impossível para mim – para ler e reler as cartas, uma vez que o carteiro chegava no final da tarde. Pouco antes que eu deixasse a cidade, 1957, vindo para São Paulo, Francine me avisou que estava se mudando para Paris, ia trabalhar em um banco. Avisei que também estava indo para a “vida”. 

Meu pai, certo dia, me ligou: “Tem uma carta da Francine! Abro?” Ela me avisava que trabalhava em um banco no Boulevard Haussmann, 102. Envolvido pelos meus primeiros anos em São Paulo, deixei Francine de lado. 

Em 1963, cheguei a Paris, levava o endereço do banco. Na manhã seguinte, cheguei ao local, vi que ali tinha morado Proust. No banco, descobri um jovem que trabalhara com Francine e ele me revelou “Elle est décédée, monsieur, je regrette”. Tinha falecido havia dois anos, me pareceu. Deixei para o final, o porquê dos meus pais rindo tanto quando chegou a primeira carta de minha correspondente. O envelope trazia meu nome e o endereço. Araraquara, Brasil. Nada mais. Um dia, ela explicou: “Perdi a tua primeira carta, me perdoe, tudo o que lembrava era o complicado nome de tua cidade, repleto de A. Impronunciável. Arrisquei, mandei”. 

Chegou. No correio, comentaram divertidos a ousadia, “quem ele acha que é?”, mas um carteiro me conhecia, queria namorar a Cecilia, uma prima minha. Trouxe a carta.

O Estado de S. Paulo, 09/04/2021