O segundo turno nas eleições presidenciais assumiu claramente o sentido de plebiscito. Está-se pró ou contra o governo, numa distância de votos que dá a Lula capital único de legitimidade política para enfrentar a turbulência da globalização transformada em mercado hegemônico e sem volta. Toda imprensa mundial reconhece o impacto deste pleito como a cunha inesperada no alinhamento das periferias aos receituários internacionais para ainda serem punidos até pelo excesso de ortodoxia que só fez exasperar as contradições do neoliberalismo. Aí está a Argentina, como fantasma nada camarada, a mostrar que é invariável a bula, não obstante esteja o país in extremis, da viabilização econômica. A enorme legitimidade da avalanche do sufrágio permite ao futuro governo nova prospectiva. Dá-lhe o direito, no cenário internacional, de contrapor aos riscos econômicos clássicos, os trunfos da nação gigante que ofereceu, pela mais irrepreensível vitória democrática, um esforço cabal à primeira das exigências da normalização como a vê o Primeiro Mundo, frente à desestabilização pirata em que insista o capital especulativo.
O pró e contra Lula fizeram-se de decisões viscerais, por sobre a avaliação de excelência de programas, ou a contradição que pudessem revelar as propostas de ambos os candidatos. Nunca se debateu tão pouco o que se quer fazer, em nome do que queira, de saída, o povo, de um governo, ou, de saída, também, o rejeite. Não se trata de equivocado conflito entre emoção e racionalidade, como querem os analistas de Serra. São impulsos mais fundos que vão ao inconsciente coletivo e cobram o liame mesmo da cidadania por sobre o vínculo do voto. E o segundo turno vai se decidir pela percepção de base, do que seja a condição de continuar na morna inércia do sistema que o cerca ou manifestar o cansaço com o regime ou, mais fundo ainda, desejo de mudar que sai da mera rotação entre chapas do país instalado para, de fato, levar ao poder o outro Brasil. O inédito, a marcar também lance na própria história das democracias do último século no Ocidente, é a viabilização de vitória quase impossível. Isto é, da consagração de candidatura de operário tangido da pobreza visceral do Nordeste, que amarra, passo a passo, os laços de promoção coletiva, passa pelo sindicato, cria o primeiro partido moderno do Brasil e disputa, eleição a eleição, o direito a ganhar a Presidência.
O título deste reconhecimento coletivo não se funda em experiências prévias de Executivo ou cobranças da rotina tecnocrata. Não se faça a Lula a clássica argüição do diploma que lhe pode dirigir o elitismo brasileiro, no seu mais arraigado preconceito. Ninguém perguntou a Lech Walesa, saído dos estaleiros de Dantzig para construir o Solidariedade, quais os seus certificados para se transformar no primeiro presidente da Polônia redemocratizada. O apoio pontifício, por sobre o catolicismo visceral daquele país, antecipou o exemplo que o caso brasileiro leva muito mais longe, na sua consistência e na amplitude do recado. Abrangeu todo o país do outro lado, envolveu o pequeno salariado brasileiro, do industrial ao funcionalismo, e consolidou a esperança das capas extremas da marginalidade social brasileira.
Devemos ao PT o desbarato do engodo populista, a fiabilidade da mudança e o pacientar com a mesma pelos "Sem Terra", sem ruptura frontal do sistema. Porque temos o PT, fomos poupados do "Sendero Luminoso" e das Farcs, e do racha institucional que sela as exclusões sociais do continente, desencantadas, de vez, da solução democrática.
É a percepção do símbolo imenso que empurra o PT à consagração inédita. Por isso mesmo se confronta com o situacionismo, e o acua, na perda de pé do discurso eleitoral que recua ao telão do medo. Ao fato consumado da nitidez da derrota corresponde à vinda a tônica de pânicos velhos, ou da ressurreição da primeira imagem do PT, já lá vão décadas. O partido é o mesmo. A caminhada o alargou e o sistema, de costas para a mudança, só pode anunciar o dilúvio como sua saída do poder. Não lhe faltou, no melhor coral grego, a voz das belas Cassandras mediáticas, em que Regina Duarte passou à defesa do status quo o tema que Dina Sfat - tantas saudades - consagrara no confronto com os militares, pelo doce desarme da catadura do General Dilermando.
Na eleição-plebiscito não está em causa a excelência do governo, ou os seus deméritos, mas o cansaço dos metais, uma usura íntima frente à estrita e intransitiva continuidade do poder. Tal não interfere com a excelência intrínseca em que a Presidência FH terá os seus méritos reconhecidos no cânon da história a que, inclusive, hoje, incorpora, como novo avanço democrático a impecável regência da transição do regime. Percalços, se os teremos, não estão no salto no escuro, ou no dito estelionato pelas promessas impossíveis mas, de saída, no que já sancionam as urnas como o melhor capital de garantia do futuro. Situação e oposição deparam os mesmos receituários básicos para a crise, no que é já hoje uma condição internacional de sobrevivência do país.
E a fiabilidade que o PT traz como novo aval é desta assinatura coletiva com que o partido fez de Lula o contrário da liderança carismática, ou de uma aventura de poder. A distância de Serra não se reduziu pela última conjura a força nova do ganhador inflexível no rigor das primeiras medidas é, sim, a do pacientamento que ainda cobrará dos parceiros da caminhada, no desafio em que amadureceu também a forra da esperança.
Jornal do Commercio (RJ) 25/10/2002