Sair do sufoco do engarrafamento asqueroso na Linha Vermelha e entrar no Campus da UFRJ é como a experiência da primeira visita a um quadro de Tintoretto na sua cidade, Veneza. O maravilhoso, a ciência, a arte. Encontro marcado no trailer da Faculdade de Medicina. Ela que escolheu o local, tinha algum conhecido estudando ali. Vestida de roupa de safári na África. Americana de Ohio, Katty não sei o quê, um sobrenome polonês cheio de consoantes. Quero conhecer as grandes imagens primordiais do escritor brasileiro. Assim se apresentou. Mais uma maluca, pensei. Sedimentação mnésica precedendo ao pensamento racional, continuou, com sotaque carregado. Bem!, retruquei, raízes libidinais ou enraizamento histórico? Minha resposta na bucha deixou ela meio confusa. Não compreendo bem, murmurou. Continuei. O que sei é que escrevo buscando o essencial e não apenas acidental. Tento integrar meu texto a um conjunto, a uma totalidade, insisti. Um misto quente foi esquecido na chapa no trailer. Uma fumaça gordurosa entrou no nariz da gente. A americana tossiu, espirrou, gemeu e se afastou um pouco para cuspir. Me pareceu hiperbólica demais. Uma aluna dava beijos melosos e molhados num rapaz com o rosto repleto de acnes amareladas. Olharam para nós, curiosos.
Ficamos nesse bate-boca indecifrável um bom tempo e fomos, no meu carro, ao Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da Universidade, como eu havia prometido por e-mail. Recebidos pela secretária do museu, minha velha conhecida, Katty fez mil reflexões eruditas sobre arte pictórica e elogiou D. João VI pela sensibilidade. Não sei se Katty debochava.
Já lá pelas 17 horas deixamos o Fundão para trás e fomos em direção a Ipanema. Eu a deixaria no hotel. Engarrafamento de novo. Ela se queixou do calor. Agora, no ar condicionado, parecia aliviada. Só então reparei que por trás daquela caricatura se escondia uma mulher inteira e vaidosa. Gosto de parecer fêmea, disse ela olhando para a frente. Aquilo já me deixou encucado. Aquela pinta toda e agora uma reflexão alimentadora do machismo? O que que tinha a ver ali dentro daquele carro dizer isso? Ela abaixou o quebra-sol, olhou-se no espelhinho, passou um batom roxo espalhafatoso nos lábios, ficou algo borrado, maquiou os cílios de roxo, desenhou um tracinho preto ao lado de cada olho e pintou as pálpebras de um roxo ainda mais vivo . O carro, no engarrafamento, virava penteadeira. Falou de um texto onde eu dizia que o sonho é um mito individual e o mito é um sonho coletivo. Lembrei da eleição presidencial no Brasil nessa linha.
Deixei a americana em Ipanema, ela elogiou a vista da Lagoa ao sairmos do túnel Rebouças. Na saída do carro a surpresa: Katty me deu um beijo na boca comprido, molhado e sôfrego, e desapareceu entre os pedestres. Já em casa procurei seu e-mail, nada, na troca de e-mails, nada, nas redes sociais, nada, digitei com cuidado Katty e todas consoante, nada. No espelho do banheiro de casa não vi marcas do batom roxo espalhafatoso borrado nos meus lábios.
No dia seguinte conversei com um amigo psicanalista. Você tem a sensação de um sonho ou de um pesadelo? Ele quis porque quis saber. Pesadelo, respondi. Então esquece, cara. A frase, claro, pouco me ajudou. Esses psi são engraçados. Senti uma depressão chegando, um aperto no peito. Pensei em voltar ao trailer, perguntar ao atendente do misto quente queimado, ao casalzinho beijoqueiro, à minha amiga do museu. Não faça isso, você vai ficar doido, me advertira Rodolfo (o psi). Deixa prá lá, parceiro, esquece, deixa. Hesitei muito mas obedeci, Rodolfo é um cara experimentado e grande amigo. Mas teve um legado positiv o tudo isso. A tal sedimentação mnésica precedendo ao pensamento racional. Comecei a escrever um conto e estou bolando um romance.