A despedida na praça de São Pedro de João Paulo 2º numa unanimidade mundial só faz redobrar a atenção para o passo seguinte da igreja. A sideração desbordou toda volta à simples seqüência, de conservantismo ou mudança. Um aluvião de consenso criou uma expectativa única que redobra a escuta do mundo exposto à "civilização do medo" e das cruzadas para justificá-lo. É um próprio sinal dos tempos o acesso ao trono de Pedro de um teólogo e intelectual rigoroso, que tem o dever da autocrítica e se investe, agora, da mais radical humildade para a sua nova toma da palavra. Encontrar os ouvidos para o anúncio implica, ao mesmo tempo, fugir às retóricas do continuísmo como das repartidas fáceis.
Bento 16 teve o segredo de se subtrair a espera óbvia e foi ao próprio âmago do que seja a relevância do seu dizer. Quer responder a um discurso adulto da igreja. Descarta-o de toda maternização, significativamente, até pela limitação das invocações mariais ao começo do pontificado, em contraste tão nítido com o seu antecessor. Não recorre ao salvo conduto de qualquer triunfalismo, após as exéquias monumentais de João Paulo 2º e o devoramento do mundo mediático. E, com olhos de ver, fala a uma igreja padecente a quem promete as asceses mais que os confortos no que seja, de fato, merecer a salvação.
Parte de uma responsabilidade do homem e dos riscos da sua liberdade mais do que do facilitário de sua esperança. Nem por outra razão Ratzinger perguntou-se da certa desenvoltura laxa dos pastores, no refrão à caridade, nas homilias. É, tantas vezes, o apelo preguiçoso à palavra de Deus, à segurança dos consensos acríticos por sobre os dos deveres dessa lucidez, de que jamais pode prescindir o caminho da crença, como bem lembrou o genuíno intelectual.
A sucessão só enfatizou o percurso de mensagens do cardeal de antes do conclave, do funeral de Wojtyla à plena entronização pontifical, na opção pela cruz, antes dos aleluias da ressurreição. Os desertos que o papa, agora, vê à sua frente, todos respondem a perspectiva de um mundo entregue à esterilidade da banalização do mal e da falta de certezas em nosso tempo.
Mas é de metamorfose a marca primeira em que se disciplinou o próprio Ratzinger, na entrega à humildade em que começa o papado a ecoar a pessoa transfigurada do pontífice que assomou ao balcão da praça. Retorna às premissas do Vaticano 2º como à ampla colegialidade episcopal. A volta ao concílio se tornou o mote imediato do anúncio de quem assume o trono de Pedro. E neste retorno aí está, por exemplo, a lição de que o relativismo moderno não deixa, nas ideologias, de guardar lances de verdade e é por elas que progride o conhecimento próprio da condição humana encarnada no seu tempo. Não há "ditadura dos relativismos" se entre-anulando, mas um difícil e único avanço das certezas no seu seio. Nem fora dessa ascese nem da lição de fora se ganha a praxe da verdade à sua idolatria. Ou à busca da verdade por entre os relativismos, caminho a que Ratzinger começou por descartar, por inteiro.
No quadro da crença interrogante, situa Bento 16 a exigência de diálogo. Na cobrança, entretanto, de um conhecimento, em plenitude, da verdade revelada, Ratzinger entendia que as diferenças da fé decorreriam da falta de uma ascese final dessa busca, que conduzirá ao encontro da igreja-mãe, detentora da palavra definitiva. Desmontava-se o suposto da caminhada "entre irmãos" a que se refere o Vaticano 2º, propondo-se ao movimento ecumênico aberto aos sinais dos tempos e desimpedido das reservas de primazias entre os credos. No pré-conclave, o cardeal Martini, que empatou com Ratzinger no primeiro escrutínio, desimpediu o conflito para a votação maciça, na firme expectativa de que o neopontífice tempere a frase: "Fora da igreja não há salvação".
O Bento 16, que se demite do cardeal do Santo Ofício, encontra-se na humildade radical que se propõe o papa teólogo e pensador, como não dispôs a igreja dos últimos dois séculos. Começou por esta prática da própria subordinação de seu pensamento à colegialidade eclesial. Só se inicia a expectativa ao que diga ao mundo da supercomplexidade do nosso tempo, das hegemonias políticas ou das tentações da cristandade. Quer ter a fé adulta como sua parceira de trajetória. E na tarefa de passar das siderações da igreja-espetáculo ao anúncio da igreja relevante.
Folha de São Paulo (São Paulo) 27/05/2005