À margem do funeral de João Paulo 2º, tive a impressão, em alguns momentos, de estar assistindo a um filme de Buñuel, um filme que ele não fez pelo exagerado custo de produção, mas sobre o qual deve ter pensado, com Fernando Rey no papel de Bush.
Juntar num mesmo cenário milhares de pessoas e 200 líderes mundiais, amontoados, cumprimentando-se rapidamente e, em alguns casos, sem saber a quem estava cumprimentando, valeria por uma metáfora irreverente de como o mundo poderia ser toda vez, raríssima na história, ao reverenciar um homem sem poder militar que, mesmo como líder religioso, teve e continuará tendo contestadores furibundos.
Lula, o rei da Espanha, Chirac, o príncipe Charles, Bush com dois ex-presidentes dos Estados Unidos, chefes de várias religiões conflitantes com seus paramentos igualmente conflitantes formavam a massa que, por alguns instantes, representou a humanidade -se a humanidade fosse a que sonhamos.
Outra consideração é sobre a besteira da mídia mundial, comentando que João Paulo 2º pensou na renúncia ao fazer 80 anos e ingressar no terceiro milênio. (A única exceção que ouvi foi a de William Waack, brilhante por sinal.) Atribuo a besteira ao desconhecimento da passagem bíblica que João Paulo 2º citou logo após. Talvez estivesse na hora de "ir".
É clara a alusão ao exemplo que o papa lembrava, as palavras de Simeão, quando pôs nos braços o menino que nascera numa estrebaria de Belém: deu graças ao Senhor e disse que poderia "ir". Simeão não era papa e nada tinha a renunciar senão à vida. Considerava-se pronto para ir.
Como Simeão, o papa cumprira sua missão e tinha nos braços a esperança. Fizera o possível e quase o impossível. Não pretendia ir para o pijama da aposentadoria emérita. Estava pronto para a morada do Pai em que ele acreditou e ao qual serviu, fiel e majestosamente.
Folha de São Paulo (São Paulo) 09/04/2005